LIVRO IV ─ OS TUMULTOS

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I ─ O PADRE FIERAPONT

Aliócha despertou antes do amanhecer. O stáriets já não dormia e se sentia bastante fraco, mas quis levantar-se e sentar-se numa cadeira. Estava em plena consciência. Seu rosto, embora esgotado, refletia uma alegria serena, o olhar alegre, afável, atraía. — Talvez não veja o fim deste dia — disse ele a Aliócha. Quis logo confessar-se e comungar. Seu diretor habitual era o Padre Paísi. Depois administraram-lhe a extrema-unção. Os religiosos reuniram-se; a cela, pouco a pouco, encheu-se; o dia amanhecera; vieram também monges do mosteiro. Depois do ofício, o stáriets quis despedir-se de todos e beijou a todos. Tendo em vista a exigüidade da cela, os primeiros chegados cediam lugar aos outros. Aliócha mantinha-se junto do stáriets, de novo sentado em sua cadeira. Falava e ensinava de acordo com suas forças; sua voz, embora fraca, era ainda bastante nítida. "Desde tantos anos vos instruo pela palavra, que se tornou isso para mim um hábito tal que o silêncio me seria quase mais penoso, caros padres e irmãos, mesmo agora, em meu estado de fraqueza", disse ele, brincando, olhando com ar enternecido aqueles que se acotovelavam em redor dele. Aliócha lembrou-se depois de algumas de suas palavras. Mas, muito embora sua voz fosse distinta e suficientemente firme, sua fala era bastante desconexa. Falou muito, como se tivesse querido, naquela hora suprema, exprimir tudo quanto não pudera dizer durante sua vida, não com o único fim de instruir, mas para fazer todos partilharem de sua alegria e de seu êxtase, expandir por uma derradeira vez seu coração...

— Amai-vos uns aos outros, meus padres — ensinava o stáriets (segundo as recordações de Aliócha). — Amai ò povo cristão. Não somos mais santos do que os leigos, por ter vindo encerrar-nos dentro destas paredes; pelo contrário, todos aqueles que estão aqui têm reconhecido, pelo simples fato de sua presença, ser piores do que os leigos e do que todo mundo... E quanto mais o religioso viver em seu retiro, tanto mais deverá ter consciência disso. De outro modo não valeria a pena vir para cá. Quando compreender que não somente é pior que todos os leigos, mas culpado de tudo para com todos, de todos os pecados coletivos e individuais, então somente o fim de nossa união será atingido. Porque, sabei, meus irmãos, que cada um de nós é certamente culpado aqui na terra de tudo para com todos, não somente pela falta coletiva da humanidade, mas de cada um individualmente, por todos os outros na terra inteira. Esta consciência de nossa culpabilidade é o coroamento da carreira religiosa, bem como de cada homem na terra. Porque os religiosos não são homens à parte, mas somente tais como deveriam ser todas as pessoas neste mundo. Então somente vosso coração será penetrado dum amor infinito, universal, jamais saciado. Então cada um de vós será capaz de ganhar o mundo inteiro pelo amor e de lavar-lhe os pecados com suas lágrimas... Que cada qual entre em si mesmo e se confesse sem cessar. Não temais vosso pecado, mesmo se tiverdes consciência dele, contanto que vos arrependais, mas não imponhais condições a Deus. Eu vo-lo repito, não vos orgulheis, nem diante dos pequenos nem diante dos grandes. Não odieis aqueles que vos repelem, vos desonram, aqueles que vos insultam e vos caluniam. Não odieis os ateus, os professores do mal, os materialistas, mesmo os maus dentre eles, porque muitos são bons, sobretudo em nossa época. Lembrai-vos deles em vossas orações, dizei: "Salvai, Senhor, aqueles por quem ninguém reza, salvai aqueles que não querem rezar a vós". E acrescentai: "Não é por orgulho que vos dirijo esta prece, Senhor, porque sou eu mesmo vil entre todos... " Amai o povo cristão, não abandoneis vosso rebanho aos estrangeiros, porque, se adormecerdes na cupidez, virão de todos os países para arrebatar vosso rebanho. Não vos canseis de explicar o Evangelho ao povo... Não vos entregueis à avareza... Não vos ligueis ao ouro e à prata... Tende fé, mantende firme e alto o estandarte...

O stâriets exprimia-se, aliás, duma maneira mais desconexa do que foi acima exposta e do que Aliócha a escreveu depois. Por vezes parava completamente, como para reunir suas forças, ofegava, mas estava como em êxtase. Escutavam-no com enternecimento, muito embora muitos se espantassem com suas palavras e as achassem obscuras... Posteriormente, todos se recordaram delas. Quando Aliócha deixou a cela por um instante, ficou impressionado com a agitação geral e com a expectativa da comunidade que se comprimia na cela e em redor. Aquela expectativa era em alguns quase ansiosa, em outros, solene. Todos aguardavam alguma coisa de grande imediatamente após o desenlace do stâriets. Muito embora em certo sentido fosse essa expectativa quase frívola, os monges mais severos estão a ela sujeitos. O rosto mais sério era o do Padre Paísi. Aliócha só se ausentara porque um monge o chamava de parte de Rakítin, que viera da cidade com uma carta da Senhora Khokhlakova para ele. Comunicava curiosa notícia chegada muito a propósito. Na véspera, entre as mulheres do povo, que eram crentes e tinham vindo prestar homenagem ao stáriets e receber sua bênção, encontrava-se uma velha da cidade, Prókhorovna, viúva dum suboficial. Perguntara ao stâriets se se podia mencionar como defunto, na oração pelos mortos, seu filho Vássienhka, que partira para seu serviço militar em Irkutsk, na Sibéria, do qual estava ela sem notícias havia um ano. Ele lho havia severamente proibido, tratando tal prática de análoga à feitiçaria. Mas, indulgente para com a ignorância dela, acrescentara uma consolação, "como se visse no livro do futuro" (segundo a expressão da Senhora Khokhlakova); o filho dela, Vássia, estava certamente vivo, chegaria em breve ou lhe escreveria, tendo ela apenas de ficar esperando em casa. E então, acrescentava a Senhora Khokhlakova, entusiasmada, "a profecia cumprira-se ao pé da letra e mesmo além". Assim que a boa mulher regressara à sua casa, entregaram-lhe uma carta da Sibéria, que a esperava. Mais ainda, nessa carta, escrita de. Ekatierinburg, Vássia informava sua mãe de que voltava para a Rússia em companhia dum funcionário, e que, duas ou três semanas após o recebimento daquela carta, esperava beijar sua mãe. A Senhora Khokhlakova rogava insistentemente a Aliócha que comunicasse o novo milagre daquela predição ao padre abade e a toda a comunidade. "É importante que todos o saibam!", exclamava ela ao fim de sua carta, escrita à pressa: a emoção refletia-se nela em cada linha. Mas Aliócha nada tinha de comunicar à comunidade, todos já o sabiam. Ao enviar o monge à sua procura, encarregara-o Rakítin, além disso, de informar respeitosamente sua reverência, o Padre Paísi, de que tinha de comunicarlhe um caso sem demora, visto sua importância, e rogava-lhe humildemente que lhe perdoasse a ousadia. Tendo o monge transmitido em primeiro lugar ao Padre Paísi o pedido de Rakítin, não restava a Aliócha, depois de ter lido a carta, senão comunicá-la ao padre, a título de documentário. E eis que aquele homem rude, desconfiado, lendo, de sobrancelhas contraídas, a notícia do "milagre", não foi inteiramente senhor de seu sentimento íntimo. Seus olhos brilharam, mostrou um sorriso grave, penetrante.

Os irmãos Karamazov (1880)Onde histórias criam vida. Descubra agora