3. Chamo isso de progresso

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Milene

Se reparar um pouco, percebe que algumas pessoas são apaixonadas pelo o som da própria voz. Eu ficava quieta, olhando o Theo e ele soltava "Ah, você é uma ouvinte tão boa" e não parecia me ouvir quando respondia "Pena que não posso dizer o mesmo". Se ouvia, não me levava a sério. Geralmente ele não levava a sério nada sobre mim.

— Do que trabalha?

— Com uma editora. Faço ilustração, roteiros e...

— Oh, sim. Mas do que realmente trabalha?

Assuntos pedantes, citações de poemas aleatórios, desprezo da música popular, ele era assim. Mas eu o conheci numa boate que só tocava elas. Eu estava dançando, descendo até o chão, então... qual a diferença de mim das dançarinas passando na tela?

— Você é doce e não vulgar. Acertei?

Não. Elas ganham com isso, Theo. Única diferença.

Mas não vou ser injusta, não é um problema só do Theo, são coisas que tive que ouvir de muitas pessoas diferentes: família, colegas e exs. Estava pensando em acrescentar o título de ex em Theo também.

— Minha filha, não pode!

— Pai, não acha estranho o senhor conhecer ele e eu nunca ter nem sinal da família dele?! Só conheço seus amiguinhos mexeriqueiros de farra.

— Ele está indo devagar. Não pode entrar assim na high society do nada, precisa de transição para se acostumar.

— Eu vou ter aula de etiqueta? Ahahaha!

— Com essa atitude, mocinha... precisa mesmo.

Ainda assim, eu não esperava que ele estava escondendo tanto de mim. Era uma situação pior do que eu pensei. Era um homem lindo, alto, reservado, estiloso, de mãos grandes e lábios macios. Infelizmente, também um ótimo mentiroso e covarde:

— Você não vê que ela quer nos separar de todo jeito?! Não tem que ouvir ela, eu estou sério com você. Quero me casar com você, Milene — me disse ao telefone.

Sim, certamente a culpa é da maldosa e invejosa esposa querendo atrapalhar a vida desse pobre Theozinho. Ele só quer amar de novo, pobrezinho, coitado...

— Que romântico...

E ele riu feliz, incapaz de entender o óbvio tom de sarcasmo em minha voz.


Nada poderia ter me preparado para o fenômeno que foi a Luena entrar na minha vida.

Com o estresse sendo o mesmo motivo, nos uniu muito rapidamente. E olha que eu achava que desde quando fiz trinta, se tornou um pouco mais difícil de criar amizades.

Olha para nós! Tínhamos conseguido uma naturalidade espantosa.

Ela era toda imponente em um momento — facilmente me sentia frente a uma chefe que não tinha — e depois ela aparecia na minha timeline com uma foto do cachorro pequeno e peludo, chamado Bombom.

Atendia ligações de negócios, pedia licença e se afastava enquanto falava outra língua, talvez alemão. Não eram as que eu entendia.

— Mil perdões. Onde estávamos?

—Eu estava contando da minha viagem a Bonito

— Sim, oh! Eu nunca fui! Que lugar maravilhoso. Você também estava maravilhosa de biquini.

E assim eu não conseguia não me sentir confortável com ela. Era tão casual que ficávamos facilmente falando sobre as notícias graves dos jornais, até as novidades mais tolas.

Me mandou foto em uma livraria, com a mensagem "Milene, eu não sabia que era famosa!" posando com as capas de livros ilustradas por mim e minhas HQs, toda orgulhosa de mim. E eu dela.

Eu tive que mostrar para minha amiga Jéssica as fotos que tinha dela, para não ser só eu a ficar ludibriada:

— Essa...! Minha nossa! Pera, primeiro você descobriu que você era a outra do cara. E aí você me faz amizade com a esposa dele. Esse mulherão é a esposa dele?!

— ERA! Não é mais, hahaha!

— Putz, que vacilo.

— Deveria conhecer, Jessica. Sabe aquelas pessoas que quando sorriem, parecem que os olhos estão sorrindo também? Ela é assim. Eu achei até que ela fosse uma cantora no começo, tem uma voz bonita de ouvir.

Me lembrei da primeira vez em que ela me ligou, "Alô, Milene? Sou eu, amor, a Luena", me engasguei um pouco para falar. Fiquei nervosa e ansiosa. Quem fazia ligações hoje em dia? Comum era mandar mensagens.

Não adiantou muito quando mesmo pelas mensagens, ela me mandou um áudio: "Milene, você tem tempo livre quando? Vamos sair pra dançar e beber a noite!". Respondi, "Vamos sim! Pena que você não toma litrão, só vinho. Ah, sabia que tem uma voz muito charmosa, dona Luena?", brinquei. A risada dela era muito gostosa de ouvir, fazia cócegas em meus ouvidos.

— Tem um cheiro gostoso. Nem sempre está de perfume, mas me disse que deve ser os cremes que passa.

— Hm...

— O que foi?

— ... nada, nada. Esquece.

— ... ?

Luena era uma mulher que seria difícil para não ter minha atenção. Mais a conhecia, mais eu queria saber.

Era um vício.

Quando ela me perguntou, surpresa, após eu dizer algo que mal me lembrava:

— Você... você está flertando comigo? — Seguido de uma risada encabulada.

Estávamos um pouco altas de vinho. A ponta do seu nariz estava avermelhada, parecia uma ameixa. Os olhos dilatados, as pálpebras trêmulas e os cílios longos acompanhavam o movimento. Os lábios com gloss eram um perfeito convite, pressionados um contra os outros. Nervosa. Seus olhos pararam na minha boca também.


Tempos atrás, ainda estávamos nos conhecendo, ela tinha me perguntado se caso Theo propôs ménage a mim alguma vez. Tinha, bem no começo, não tínhamos uma relação realmente. Ela ficou chateada, era sua insegurança: "Ele me pediu poucas vezes. Acho que pensou por eu ser bi seria bem mais fácil me convencer, mas eu nunca quis. Até pensei em tentar, só para ele não procurar em outros lugares." E enquanto a respondia, lembrando de não se culpar usando falas de, "traição diz mais sobre quem trai do que quem é traido", absorvia aquela informação. Interessante. Não pensei muito sobre no começo.

No começo...

— Venho "esquecendo" coisas na sua casa de propósito, sabe? Ter motivo para voltar. Eu acho que estou a quase um ano flertando, mas que bom que notou.

— Oh! Certo... — ela perdeu o fôlego. — Eu sempre falo que vou devolver e nunca devolvo, para você voltar.

Passei suas tranças para trás de sua orelha e toquei seu rosto.

— Não precisamos ter pressa.

Me aproximei mais dela e ela fez o mesmo naquele grande sofá. Nos espremimos num canto, como se ele fosse uma poltrona. Quase no colo uma da outra.

— Ok — me respondeu, a mão trêmula pousou no meu joelho. — Mas pode dormir aqui se quiser.

— Uh... — suspirei ao sentir seu beijo em meu rosto — ok...

E me calei para beijar sua boca.

E eu que sou a vilã?Onde histórias criam vida. Descubra agora