Caça(dor)

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          À rua deserta, ouvi Milton Nascimento cantar bem de perto. Cada nota sua era dolorosa, cada verso seu um pesadume, somente embalavam os suspiros que me traziam à janela. Por mais que eu quisesse, não havia carros na paisagem, pessoas tampouco. Às vezes, até que algumas almas vivas apareciam, mas logo depois sumiam no horizonte.

          Seria para sempre que eu iria ser um caçador de mim? Eu estava cansado daquela bosta. Daquela quarentena que nunca acabava. Sem mais graça na vida, todo mundo só ficava trancado em casa. A gente até que saía um pouco, mas era chato não poder ser mais livre para fazer o que quiser.

          Eu tinha saudades de antigamente. De poder abraçar quem eu quisesse e quando eu quisesse. De sair por aí sem ter que levar álcool. De andar sem ter que usar uma máscara que mais parece que te asfixia. Mas, em 1982, muitas pessoas ao redor do país começaram a morrer do nada e papai, que é médico, só passou a me deixar sair para a escola e ainda de máscara e carregando um vidrinho de álcool em gel. Ele tinha me dito:

          —   Dudu, o que eu vou te falar é bem sério. Eu não quero que você fica tirando essa máscara do rosto em hipótese alguma e passa álcool na mão sempre que cê encostar em algo. Não fica muito perto também dos seus amigos não, viu? Você já tá quase virando homem crescido. Então, me escuta — passou a sussurrar, soltando seu bafo forte de café na minha cara — O governo não tá deixando os médicos falarem sobre um surto do corona no Brasil, eles querem deixar isso parecer que ainda só tá no exterior. Mas, pelos sintomas dessas pessoas que tão morrendo aí no jornal, parece ser mesmo a covid. Então, por mais que você tenha que ir estudar de qualquer jeito, eu não quero que você traga isso para dentro de casa. Você me entendeu?

          Na hora, eu fingi concordar com ele. Mas achei que papai tinha ficado biruta. Por que os militares iriam esconder um trem desses? O velho caducou. Então, me lixei para o que papai disse, e, sempre que eu saía de casa, eu escondia a máscara e o álcool dentro da mochila. Já bastava a Adriana, ou melhor, a Dri – minha vizinha e melhor amiga que sempre caminhava comigo para escola – me chamar de Senhor Mascarado; eu não precisava que o resto da galera me chamasse assim também. Mas essa vida de espião era difícil, porque eu quase sempre esquecia de pôr a máscara antes de abrir o portão de casa. Sinceramente, eu só consegui por medo de ser descoberto e virar carne cortadinha por cinta.

          Mas papai e mamãe seguiam rigorosamente esse papo, e, no bairro, a gente ficou conhecido como a Família do Conde Drácula. Acharam que a gente era um bando de metidos. É cada baboseira, meu Deus. Mas até que aí a vida estava boa, dava para suportar. Mas, quando, subitamente, a Dona Nice e a neta dela, Amanda, morreram sem explicação, a cidade ficou esbaforida. Afinal, Dona Nice, uma senhora meiga e gentil que sempre distribuía balinhas, era extremamente amada por todos e todo mundo chorou a morte dela, mas, por mais que fosse doloroso de aceitar, até que fazia sentido ela morrer: ela já era bem velhinha, tinha uns sessenta anos e batata. Mas a neta dela tinha a minha idade – fazia parte da minha turma – e menina mais saudável que ela não tinha. Ela fazia todo o tipo de esporte que podia, e, quando tinha as doenças de criança, nem parecia que pegava. Ela era tipo o Trinity.

          Aí começou o bafafá: será que a menina tinha uma doença que ninguém sabia? Será que o covid já tinha chegado no Brasil? Mas, se fosse isso mesmo, as autoridades não afirmavam que não e o corona só não matava velho? Diante disso, o coronel da cidade, Seu Lúcio, falou que era palha, que a infeliz morte da garota deveria ser só coisa do destino. Deu mole. O povo da escola começou a reclamar de uma forte dor de cabeça e de febre alta e o colégio teve que fechar por uma semana. Caguei de medo na hora, mas, pelo que parecia, eu não tinha pegado nada. Eu só sei que, quando voltou as aulas, outros pais além dos meus também estavam paranoicos e uns mascarados – agora incluindo eu – invadiram as aulas. Até mesmo a filha do Coronel, a Elaine, que estava no terceirão, teve que se juntar ao grupo.

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