Entrevista com o gato do azar

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  Se alguém perguntou-se o quê exatamente eu sou , darei algumas respostas.

  Primeiro de tudo , meu nascimento foi turbulento.  Antes de abrir os olhos , escutava explosões , gritos e ruídos incessantes , mas , estava uma penumbra total.

  E eu não tinha corpo. Era apenas um forma vaga de pensamentos se deixando flutuar pelo fluido sombrio e repugnante que envolvia-me.  A primeira visão que foi interpretada em minha mente , foi um rosto masculino. Sua expressão demonstrava uma paz absoluta. Pela expressão de seu rosto , percebia-se que ele estava no ápice de sua felicidade.  O único fato estranho nessa visão...     era que faltava parte de sua cabeça. Conseguí ver claramente seu cérebro escorrendo por um buraco aberto em seu crânio,onde deveria ser a testa , olho e orelha esquerda. Depois que adquiri pensamentos e conhecimento , compreendi que sua expressão de felicidade devia-se ao seu merecido descanso,após tanto dor excruciante.

  Acho que deveria ser a sensação de retirar um espinho bem grande do pé.  Aliás , deveria se um espinho com espinhos...  O homem que se tornou a minha primeira memória vestia roupas gastas , descoloridas , seria chamado de mercenário. A minha volta , muitos corpos mutilados , ou apenas uma perna ou braço avulso aqui e acolá. Tinha até uma cabeça a alguns metros de distância que me mostrava a língua , como quem zombava.

  Até aquele momento , tinha a consciência de um bebê , ou seja , praticamente nenhuma. Pensamentos tolos vagavam pela vastidão do meu cérebro , tão vazio , e então ocorreu-me um impulso. Hoje acredito que aquele ato foi curioso , no mínimo. Agora sabendo muito bem que aonde eu havia nascido ,era os restos de um campo de guerra , brutal. Local  que foi , basicamente , meu útero de nascimento.   Enfim , eu estava com fome. Fome de recém nascido.

  Me perguntei se aquele líquido de cor forte seria uma boa refeição. Fui atraído instintivamente para o sangue do mercenário , minha mãe leiteira foi um mercenário,que ofereceu seu sangue como alimento. Digo , o cadáver ofereceu. Através do sangue , absorvi o conhecimento armazenado nele,e a primeira coisa que eu disse , foi:

-Essa erva é da boooooaa!...-Me surpreendi mais com o fato de ter falado , do que com os últimos pensamentos do mercenário...                  Num segundo olhar confirmei o cigarro feito de ervas duvidosas próximo a boca ainda inteira do mercenário.

  Pelo sangue dele , bebi conhecimento , devorei as letras e as palavras para , em seguida defecar  pensamentos , como todo bom humano deveria fazer , mesmo considerando o fato de que na verdade eu sou um gato.   Literalmente sou um gato , não estou me elogiando!

  Ainda sim , a cor negra sedosa , de textura quase líquida da minha pelagem é encantadora , combina com o prateado dos meus olhos. E nem se fale dos meus bigodes sedutores , um sacolejar de bigodes e posso deixar qualquer fêmea aos meus pés!

  Ah!Sim , perdão , perdão. A minha história certo?

  Aonde eu tava?  Como fui nascer em um campo de guerra,certo?

  Você conhece a frase a fé move montanhas?

  Quando absorvi o conhecimento sobre como era um gato . Compreendi algo e  perscrutei pelos corpos dos combatentes pela minha verdadeira mãe , aquela que eu deveria ter sugado seu leite e me tornado um saudável gatinho , dentre tantos outros.

  Mas , esse ser , a que deveria ter me dado a luz , minha mãe. Não estava lá.

  Perdoe-me , fiz parecer que ela tinha saído do local e ido para algum outro lugar , me abandonando.

  Desde a minha vinda para esse mundo , onde pode-se encontrar pessoas com metade da cabeça faltando e curtindo seu último cigarrinho de erva antes de morrer , eu não havia visto outro ser vivente.

  Minha mãe não existia ali desde o começo. Não havia possibilidade nenhuma de ela existir ali...

  A minha mãe deveria ser uma gata , uma fêmea eu diria. Então , levando em conta que nenhum dos corpos teriam as condições fisiológicas para me dar a luz , nem a lógica para isso acontecer já que nem de longe eu seria humano e também não existia nenhuma fêmea da minha raça por ali.

  Cheguei a conclusão de que eu sequer era um ser vivo. Minha existência seria classificada como um ser fantástico...         ou talvez um monstro.

  Más , chegando a isso devo explicar meu nascimento com termos lógicos. Afinal mesmo sendo um ser ilógico , feito de loucura , sou um gato.

  Não me pergunte o porque de eu ser um gato, explicar o meu raciocínio lógico. Já que eu sou essencialmente ilógico , eu não deveria existir.

  Afinal eu sendo algo ilógico , seria lógico que eu desvendaria o mistério do meu nascimento com vinte minutos de vida  consumados.

  Em termos simples , o útero que me deu a luz , foram os pensamentos massivos dos combatentes daquela guerra em especial.

  A fé move montanhas , isso é verdade , do contrário como eu estaria aqui , falando? Esse conceito , esse princípio foi a minha formação inicial , meu desenvolvimento se deveu aos pensamentos dos humanos de que deveria existir algum motivo maior , algo ou alguém maior que eles , responsável por tamanha infelicidade em participar de uma guerra que se tornou um massacre para ambos os exércitos.

  Não queriam enxergar suas realidades e por isso quiseram acreditar que não foi culpa deles. Colocaram toda sua fé em uma frase , que em uma hora ou outra durante a guerra , todos pensaram , mas foi mais ou menos no mesmo tempo:

  -Que azar maldito!

  Essa frase me deu a vida que não tenho , já que não existo , más ainda sim estou aqui. Essencialmente eu me tornei a personificação pura , refinada e amaldiçoada do azar de todos.

  O útero do meu nascimento foram a fé dos humanos no azar que regia suas desgraças , meu primeiro alimento foi o sangue que escorria do cérebro do primeiro humano que enxerguei , meu primeiro pensamento foi o êxtase do cigarrinho de ervas que minha mãe teve , no caso o mercenário já morto . A minha existência não compreende a lógica , más aplico ela em meus pensamentos pelo fato de eu ter a forma de um gato , esse fato também é ilógico , naturalmente...

  Essa é a história do meu parto.

  -(sku vbvkulervne isruvselrihbl iuen blesnblsiubn?)-A entrevistadora pergunta em sua língua natal , entendo todas as línguas faladas na terra , azar não distingue nacionalidade...

  De nada e sim,claro que você está amaldiçoada com um azar imenso,afinal você desejou ter uma entrevista com o gato do azar,só de olhar para mim é arriscado para você...


Contos do gato do azarOnde histórias criam vida. Descubra agora