Quando minha mente voltou a girar as engrenagens, não conseguia me mover. Não sentia nada além do cheiro forte de incenso agora dispersado no ar. Dona Olga devia ter aberto a janela do quartinho escuro, pois meus cabelos me faziam cócegas na testa conforme o vento batia. A respiração se tornou bem mais fácil do que era há alguns poucos minutos com toda aquela fumaça, porém a culpa da minha lentidão sensorial, tinha quase certeza dever àquele chá quente e gosmento, mas sem dúvida não reclamaria quando o efeito passasse. O peso enorme que carregava nas costas sumiu como balões subindo para o céu, nenhuma parte do meu corpo estava retesada ou tensa, tão relaxada que quase esquecia o porquê de estar ali. Quase.
A frieza e aspereza contra minha face me instigava a sair do estado de relaxamento e dar vazão aos sentidos. Até juraria que a própria razão me cutucava para voltar, então querendo voltar o mínimo possível mexi levemente uma das mãos para experimentar meu controle. Perguntei-me onde estaria a lembrança do momento em que deitei no chão, simplesmente não recordava. Minha mão foi espetada por algo e além do incenso já quase desaparecido no ar, podia farejar algo verde, folhas talvez. Fiz um novo esforço de associação e pensei em grama. Estava deitada na grama? Acho que não. O quartinho da dona Olga ficava no segundo andar de forma que fora de lá só havia calçada e asfalto. O chá devia estar me levando a efeitos mais profundo do que o esperado, além do mais estava sentada, há poucos minutos, numa cadeira de frente com dona Olga, nós segurávamos as mãos uma da outra. Sem grama, sem corrente de ar.
A aflição lentamente se reinstalava nos meus músculos antes relaxados. Minha mente sempre a frente, já não conservava nada do tão bem vindo torpor. Devia começar a admitir a frieza do ar, gelando toda minha pele mesmo coberta, ombros, nuca e posterior das coxas, assim como o descabimento de não estar mais no quartinho com dona Olga. Algo me dizia estar bem longe de lá, dito e reverberando na parte inconsciente dos pensamentos, para o meu próprio bem.
Finalmente além do escuro, avistava a formação de uma embaçada auréola de, achava ser eu um poste próximo. Ela girava e girava como num parque de diversões. Minha mão esquerda estava próxima do rosto, podia vê-la suja do chão, estática diante dos meus olhos, o frio do tempo a congelava lentamente, eu podia sentir. Logo imaginei como não estaria o lado direito do meu rosto, amassado contra a aspereza da grama. A aflição duma ponta do capim entrar no olho, ajudou com que forçosamente afastasse um pouco o rosto do chão. Na tentativa seguinte, o objetivo era levantar a cabeça de lá, o que foi impossível para mim. A gravidade não permitia. Então calcei o rosto com a mão direita. Menos mal.
Imaginei se estaria sonhando um sonho consciente, imaginei diversas possibilidades. Mas, quando me veio a lembrança da tia Luzia, minha teoria caiu por terra. Eu não dormia há quase dois dias, não tinha sono e nem me sentia mal pela falta dele, o luto se encarregava disso. Por outro lado, eu bem poderia ter caído no sono e nem tinha consciência, mas eu lembrava da dona Olga, do incenso e de fechar os olhos. Ela dizendo para eu respirar fundo e limpar a mente, poderia eu ter dormido assim? Acreditando na possibilidade de estar num sonho forcei um despertar que não veio. Aquela sensação de imobilidade era torturante como numa paralisia do sono.
O frio na barriga veio quando uma sensação de chão cedendo mexeu com meu corpo até então imóvel, porém quando apertei os olhos na tentativa de enxergar algo mais nítido, percebi que não era o chão que havia afundado comigo. Era meu corpo desobediente que havia saído do chão involuntariamente.
Um pescoço foi aproximado do meu rosto e em meio a imagem embasada produzida por minha visão, reconheci o perfil de uma boca bastante proeminente que se movia com rapidez. O homem gritava algo que meus ouvidos não capturavam, enquanto era sacudida pelos braços ao trotar dos passos dados por ele e pela primeira vez pude sentir um calor me aquecendo, graças aquela pessoa.
A rapidez que a luz fraca do poste passou pelo vidro escuro, o som seco e fofo da porta do carro e o ar quente do ambiente me impeliram a puxar uma respiração tão forte e ruidosa que quase não pude exalar de volta, a sua necessidade era tanta que mais parecia a primeira golfada de ar puxada naquele lugar.
Não conseguia me mover ainda, a visão era turva e a audição era capturada no volume mais baixo. Aquela foi a sensação mais esquisita que já havia sentido até aquele momento. Tateei o banco em busca de algo ou alguém que me avisasse de que não estava sozinha num lugar fechado. Bati numa perna coberta da qual retirei a mão tão rápido quanto a pus. Então havia alguém ali e o desespero de pedir ajuda voltou, fazendo-me ir buscar novamente aquele alguém.
"Não posso ver, eu não tô conseguindo..." Assim como a respiração, minha voz estava afetada e rouca demais como se eu não a usasse há muito tempo. O que era provável, mas não era somente por isso. Eu não a reconhecia, soava com uma entonação diferente.
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A VIAJANTE
RomanceBrasil, Bahia. Estados Unidos, Califórnia. Lugares diferentes, tempos contrários e histórias com finais que podem ser diferentes. Numa sessão de tarot com a estranha vizinha, a fragilizada e solitária Anne viaja acidentalmente dezenove anos no tempo...