Alguém com um imóvel desses com certeza tem dinheiro para o básico. A única opção plausível era de ele não passar muito tempo ali, e eu apostava nisso. O lugar era muito organizado, nem um copo sobre a bancada e nenhum livro ou papéis em cima da mesa perto das estantes.
Notei duas portas de ferro, de longe pareciam sem pintura. Cada uma em lados opostos da sala, precisamente sincronizadas uma a frente da outra. Mais de perto mostravam as falhadas da pintura mal feita com cinza-escuro, combinando com as paredes uns dois tons mais claras.
As paredes cor de cimento, a escada de fábrica e as lâmpadas amarelas penduradas no teto por fios longos, camuflavam a elegância com uma simplicidade planejada, assim eu descrevia aquele lugar através do meu gosto e observação limitada de arquitetura. Decidi classificar o estilo como industrial, mas no mesmo instante em que bati o martelo, vi no canto oposto ao da cozinha, uma caixa escura suspensa por quatro pezinhos arredondados de um aparador. Um exemplar das televisões do final do século vinte. Apostava que havia sido febre na virada dos anos 80 para os 90.
Nunca havia visto uma de perto. E era incrivelmente grande e robusta em um formato quadrado. A tela centralizada deixava espaço de um palmo para os botões embaixo, muito bem conservada. O estilo industrial acabou passando a beirar a decoração retro somente com aquele item.
"Fique a vontade para entrar e tomar um banho. É essa porta a direita." Indicou o Nilef com o quepe retido embaixo do braço, a mão ainda enluva havia feito um leve maneio para a porta. "Tem toalhas e roupa nas gavetas. Estarei aqui se precisar de algo." E levou os braços para trás em posição de serviço, a irritação subiu lentamente até minha cabeça, a vontade de dizer, "para com isso, homem. Tá confundido alguém do ramo com madame", instalou-se na garganta, coçando a língua, acho até ter aberto a boca, quando estremeci com o levante repentino de voz. Só escutei uma afirmativa surpresa escapando dos meus lábios. "All right". Não podia escolher o mais bizarro. Acordar em Los Angeles ou acordar falando e entendendo inglês fluentemente. Então concordei que não havia um ou outro. Santo Deus, eu tanto estava quanto falava.
A sensação de total infamiliaridade nunca foi tão latente. Às vezes é preciso a invenção de uma nova palavra para nomear algo tão subjetivo, no meu caso aquele velho sentimento esquisito e ácido de descabimento. Ele me observava, eu sabia, mas sem encarar de maneira nenhuma, tão desconfiado quanto eu. Eu também não viro de costas para você, declarei mentalmente.
O lado de dentro da porta era em cores de nude, assim como o quarto todo. Cômoda, persiana, os lençóis da cama, mudando apenas o contraste dos tons, sem sair da paleta. "Finalmente só", suspirei, depois de trancar a porta. Sentei junto ao pé da cama com a cabeça entre os joelhos, enquanto ainda levava em conta a possibilidade de estar sonhando. Já havia desmaiado e acordado numa cama de hospital, mas não sabia se era possível dormir e acordar num sonho.
Revirando a mochila, encontrei o papel de despejo do apartamento. Um outro papel daquele foi o responsável pelo desmaio que nos levou a descobrir a doença da tia Luzia. Não havia material mais real que aquela folha amassada. Bem, eu estava mesmo em Los Angeles! Como? Só sabia que não através um meio de transporte qualquer. O porquê? Esse era o grande mistério que permearia aquela minha viagem.
Um mal estar me nocauteou com uma gravata, sem aviso. Respirava como um cachorrinho após uma longa corrida, suava frio e minhas mãos tremiam enquanto eu massageava meu peito tentando acalmar aquele surto. Tentei levantar para lavar o rosto, mas as pernas bambearam tanto que voltei para onde estava. A ânsia de vômito revirava as tripas vazias.
Chamar o Nilef não era nem uma opção, além de me abrigarem, não assumiria o papel de garota chilique. Preferia morrer, porque assim não veria sua cara de "aí desmaia, viu" e morta não veria essa expressão. Resolvi que tirar a blusa poderia ajudar, pesadamente escalei a cama para puxar o cordão da persiana atrás da cabeceira. Assim que vi a os prédios ensolarados e o vento gelado bagunçou meus cabelos, a respiração voltou aos pulmões como mágica. Fiquei alguns segundos apreciando o ar fresco e a vista dos prédios comerciais, mesclados com prédios de poucos andares como o que eu estava. Admito que a vista era muito incomum para mim, todas aquelas pessoas também incomuns indo e vindo... Por alguns instantes fiquei atraída ao movimento da rua, o receio de voltar a sentir aquela sensação de morte me fez, também ficar mais tempo sentindo o ar fresco limpar meus pulmões. Ar fresco californiano, não me permitia esquecer.
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A VIAJANTE
RomantizmBrasil, Bahia. Estados Unidos, Califórnia. Lugares diferentes, tempos contrários e histórias com finais que podem ser diferentes. Numa sessão de tarot com a estranha vizinha, a fragilizada e solitária Anne viaja acidentalmente dezenove anos no tempo...