"Uh-oh, Nilef liga a luz aí, por favor." Uma voz gravíssima rompei meus ouvidos como uma rolha saindo da garrada de champanhe. Pufe. Tão logo aquele sentido me foi devolvido, um zumbido infernal de todos os sons cresceu de volume rapidamente. Carro, motor do carro, buzina, e até o pigarreio do homem ao lado. Tudo era horrivelmente alto. Fui abrindo meus olhos como depois de uma cirurgia, pelo menos achava que se procederia desse jeito. Eu estava atrás do motorista que me olhava curioso pelo retrovisor. O homem ao meu lado tinha a mão em cima do encosto de cabeça do banco, voltado para mim.
"Você está bem, moça? Passou mal?" Seu tom era bastante cuidadoso e... nervoso. Olhava para o retrovisor e os olhos refletidos lá, devolviam o olhar. Era um tipo de olhar combinado para situações de perigo, logo entendi. E ao que tudo indicava, eu era o perigo. A razão? O homem ao meu lado usava um Rolex no pulso tão amarelo que me constrangia. E eu ali poderia muito bem ser uma malandrinha esperta fingindo cena.
Onde é que eu havia me metido? Ou melhor, fui metida. Virei o rosto e lojas do outro lado da pista tinham as luzes ofuscadas pela película escura do vidro. Pessoas andavam pelas calçadas, fazendo-me crer que não era tão tarde. Só tinha uma coisa, aquele bairro eu não conhecia.
"É... senhorita, você está machucada? Porque se quiser, te levamos ao hospital... é, hum... que você estava, tipo, caída e já deve se marcar uns 15º C ..." O homem articulava ainda mais freneticamente, passando a língua pelos lábios, desatando a explicar. "Não sei como ninguém parou para ajudar, se bem que não havia muitas..."
"15ºC?!" Olhei-o enquanto repuxava os lábios com vontade de rir. "Sim?! 15ºC..." ameaçou dar um sorrisinho, mas logo o conteve. Se a desconfiança tivesse uma expressão, era aquela em seu rosto. Parecíamos ambos inseguros e ressabiados pela presença um do outro. Virei a cabeça para o retrovisor de onde via o motorista, que já sabia se chamar Nilef. O tal Nilef enxugava tão rapidamente a testa com uma toalhinha, parecia temer desviar nossas atenções daquela cena estranha rolando. Tarde demais para mim, pois Nilef usava um quepe e... luvas brancas? Era isso mesmo? Quem ainda fazia o motorista usar uniforme?! Parecia uma disputa de quem parecia mais esquisito. Voltando para o homem que havia me ajudado, tentei me concentrar nele. "Nunca ouvi que a cidade pudesse alcançar essa temperatura, Porto Seguro é tão quente quanto o..." Contive a comparação inapropriada da minha cidade. Não se cospe no prato em que se come, afinal. E eu amava aquele clima apesar de sempre reclamar quando estava fora da praia. Aquele cara era novo por ali então não falaria nada sobre seu equivoco, talvez fosse de outra cidade. Com certeza era.
Sem esperar, quem riu dessa vez foi o homem, rompendo o abafado do carro, bem ao meu lado.
"Porto Seguro? O que um Porto Seguro?" Sua sobrancelha arqueou, sacudindo a cabeça em negativo. Então uma entonação estranha foi detectada somente naquele momento por mim e continuou cada vez que ele falava. "Olha moça, só me dizer sua rua e..." E pigarreou. Naquele momento eu não admitia, mas no fundo eu já havia iniciado o processo de pânico. Ele não parecia estar querendo me pregar uma peça, pois afinal, era só dar uma olhada no cara. Não, ele não tinha cara de quem perderia tempo com essas bobagens ainda mais naquela situação atípica com alguém atípico. Sem desejar comecei a pensar numa hipótese, numa hipótese bem descabida enquanto desviava os olhos vez ou outra para as calçadas tão desconhecidas quanto acho que seriam as ruas da capital da Inglaterra.
"Posso levar você na sua casa ou em qualquer lugar que você queira ir, está bem?" Concordando, dei o endereço e voltei o olhar pela janela. Simplesmente não reconhecia nenhum prédio se quer por qual passávamos. Seguimos por ruas e mais ruas, eu focando toda a concentração na tentativa de encontrar qualquer casarão antigo ou algo familiar. A frase que mais gostaria de dizer naquele momento seria: "Já passei por aqui um dia desses." O nunca pronunciamento dessa frase começava a me deixar apreensiva. Algo me dizia que rodaríamos eternamente sem encontrar a construção antiga de três andares onde morava desde criança. Meu pé começava a bater com mais força no tapete, mais limpos do que os lençóis da minha ajeitada cama de solteiro, perguntava-me se dormiria aquela noite nela. Virei para o homem e ele continuava em sentido contrário para a sua janela, exalava e arqueava a sobrancelha. "Também não gosto situação, camarada." Pensava. Até o Nilef sofria enxugando sua testa com a toalhinha na velocidade 3. Acalentava-me explicando meu próprio desconhecimento absurdo da cidade, bem poderia estar num bairro afastado, longe de qualquer loja ou ponto de referência conhecido por mim, afinal minha vida era de casa, alguns pontos específicos do bairro e para a pousada da dona Joana, sem Happy Hour ou qualquer dessas coisas de alguém com vida social. Eu me culparia se fosse possível por não ter conhecido melhor a cidade, indo a lugares afastados com alguns amigos, assim talvez eu não estivesse num carro com desconhecidos, mas tia Luzia sempre estava precisando de mim em casa e depois, sempre precisa de mim no hospital, que se mostrou muito mais necessários do que os afazeres de um lar. Ela precisava de uma companhia enquanto passava os dias deitada naquele leito e respirando melhor através do oxigênio no tubo.
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A VIAJANTE
RomanceBrasil, Bahia. Estados Unidos, Califórnia. Lugares diferentes, tempos contrários e histórias com finais que podem ser diferentes. Numa sessão de tarot com a estranha vizinha, a fragilizada e solitária Anne viaja acidentalmente dezenove anos no tempo...