Ato 3

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      Rebecca tomou o último gole do café aguado que comprou num quiosque próximo à Quinta Avenida. O ensaio do dia anterior não fôra tão produtivo como ela queria, e as observações do diretor não lhe saiam da cabeça. Ele disse que ela era obcecada demais com técnica, e que este tipo de obceção impede as bailarinas de se entregarem ao papel.

      A moça, nascida e criada em Nova York, crescera perseguindo o sonho de ser uma prima dona, como sua falecida avó paterna. Queria ser linda e vistosa como Casimere Stelmann e receber flores após uma apresentação, e para alcançar esse intento, necessitava superar suas limitações, alcançar perfeição técnica e conjugar suas melhores qualidades num único pacote para atrair sobre si todas as atenções da companhia e fazer que a mesma compreendesse que ela era o rosto novo para ser a bailarina.

      O problema era que Beth Maclntire, com seu brilho e carisma desconcertantes, ofuscava as demais bailarinas, não deixando que ninguém se aproximasse dela. Mesmo não sendo mais uma garota, a princesinha do Leroy esbanjava vitalidade e vigor, o que relevava às demais importância secundária.

      Rebecca jogou o copo de isopor num cesto de lixo, ajeitou o gorro sobre os cabelos negros e lisos, apressou o passo para chegar ao carro. O frio aumentava dia após dia. Estava tão ou mais frio que no Dia de Ação de Graças, quando sua família se reuniu pela última vez e chamando ao seu quarto Violet, sua prima e confidente, confidenciou-lhe que às vezes queria que Bette sofresse um acidente e não pudesse dançar.

      — Não se deseja isso a alguém nem brincando — Violet atirou um travesseiro na prima. — As palavras têm força e podem se realizar.

      — Mas se ela não sair do meu caminho, eu nunca vou sair do corpo de baile — Rebecca tentou justificar suas palavras inglórias.

      — Então treine mais, se dedique mais, faça mais aulas. Inveja não vai te levar à lugar algum, só vai fazer de você uma frustrada.

      Rebecca revirou os olhos e cruzou os braços atrás da nuca, olhando para o teto.

      — Em todas as profissões existe inveja, Violet. No balé não é diferente.

      No fundo, Rebecca era incapaz de desejar o mal de alguém. Respeitava Beth e a admirava por suas conquistas, todas obtidas sem puxar o tapete de ninguém. Mas quando a Rainha dos Cisnes transcendia, fazendo o improvável acontecer nos palcos, a jovem sentia uma dolorosa perda de talento que lhe tirava o sono e a fazia se sentir só mais uma entre tantas. 

     E isso, uma neta de Casimere Stelmann não podia aceitar.

      — Aqui está — Rebecca ofereceu o copo de café à Hope ao entrar no carro.

      — Obrigada — a colega retirou a tampa e tomou um gole.

      A moça de cabelos escuros afivelou o cinto, deu a partida no carro e entrou na avenida.

      — A cidade está ficando linda — Hope observou os enfeites de natal sendo postas nas portas de alguns estabelecimentos. As casas do bairro onde ela morava já estavam com guirlandas nas portas.

      — Sim — Rebecca engatou primeira marcha quando o sinal ficou verde. — O capitalismo já está dando as caras. Já é tempo de gastar, comprar, aquecer a economia.

      — Que humor, Becca! — Hope franziu a boca. — Onde está seu espírito natalino?

      — Sou judia, esqueceu? O natal cristão não significa nada para mim.

      — Mas você podia pelo menos se deixar contagiar, se alegrar, passar uma mensagem de esperança para as pessoas.

      — Mas eu sou uma pessoa alegre — a motorista se defendeu.

      — Tá bom — a outra riu com uma pitada de ironia.

      Rebecca soltou o ar comprimido entre os lábios, passou os dedos na mecha rebelde de cabelo que lhe escapava do gorro, olhou com o canto de olho para a colega.

      — Tudo bem, não sou tão alegre — a bailarina judia reconheceu. — Às vezes sou mal humorada, descompensada, irritante e esquentada.

      — É isso aí.

      — Mas eu tenho meus motivos.

      — Ah, é? E quais?

      A morena hesitou antes de responder.

      — O que mais poderia ser, Hope? Cobranças, críticas, pressão, estresse… Tudo isso junto. O ensaio de ontem foi uma merda, eu… chorei quando cheguei em casa.

      Hope assentiu, segurando o copo de isopor por entre as mãos, e se solidarizou com a amiga, pois em sua autocrítica, reconhecia que também não rendera tudo o que podia. Ela sabia o que era entrar numa sala com a expectativa de encher os olhos do ensaiador e do coreógrafo e sair arrasada.

      Não importava o quanto as moças se arrebentassem. Sempre era pouco, a perfeição era inalcançável. Mesmo jovens talentosas como Nina e Verônica, que estavam há mais tempo na companhia e encaravam a dança como uma religião, tinham seus dias de gatas borralheiras nos ensaios. 

      — O Leroy pegou pesado com você ontem, não é? — Hope olhou para a amiga.

      — Não seja modesta nas suas palavras. Ele me arrebentou. Só faltou me chamar de burra. Só faltou dizer que não era minha professora de baby class para me ensinar conceitos ridículamente simples.

      — Pensei que já tivesse se acostumado…

      — Eu não me acostumo! — Rebecca esmurrou o volante com ambas as mãos, elevando o tom de voz em vários decibéis. Se constrangeu por escancarar a raiva – um de seus defeitos – , principalmente por estar em companhia de uma das pessoas a quem mais estimava. Skylar era outra dessas pessoas. — Estudei em mais de cinco escolas de balé, desde meus cinco anos até os dezenove, quando vim para cá. Nada era igual aqui. Havia coleguismo, cumplicidade, apoio dos professores. Aqui, todo mundo quer se devorar.

      — Estamos numa companhia profissional, não num estúdio de balé de bairro, Becca. É lógico que não pode ser igual ao que você viveu lá atrás.

      Rebeca concordou, meneando a cabeça positivamente. Era verdade, ela deixara de ser adolescente há três anos. Antes ela pagava para participar de festivais de dança na costa leste dos Estados Unidos, pagava para confeccionar figurinos, taxas de inscrição, tudo. Era amadora. Agora, era uma artista profissional de uma das maiores companhias do país, portanto, tinha que dizer a que viera, e sobreviver à sanha de um diretor obcecado por resultados era questão de honra.

      A moça de olhos azuis sentia aversão pelo diretor. Se não fosse o firme propósito de vencer na dança, teria saído da companhia, porque não concordava com os métodos profissionais de Mr. Leroy, humilhando as meninas, acirrando as rivalidades entre as mesmas para extrair-lhes o que queria. Para piorar, corria à boca solta que ele se envolvia com uma das bailarinas – e qualquer uma era capaz de apostar um rim que Beth era essa suposta bailarina.

      — Aquela não é a Skylar? — Hope apontou para a calçada.

      As duas olharam para uma jovem de calça jeans justa, botas, casaco e gorro que andava com as mãos enfiadas nos bolsos e uma mochila nas costas.

      — É ela mesma — Becca sorriu.

      — Dá uma carona para ela.

      Rebecca reduziu a velocidade e emparelhou seu Volvo prateado junto à calçada. Quando estava alcançando a colega, Troy surgiu atrás da moça de Iowa e enganchou seu braço no dela.

      — Melhor não — Rebecca tornou a sorrir. — Ela tem boa companhia.

      Assim dizendo, pisou no pedal direito e viu pelo retrovisor o solista e a bailarina do corpo de baile rindo e conversando.


Pássaro SombrioWhere stories live. Discover now