Capítulo II - O que procede o êxtase

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Kun já era um homem adulto e formado, tendo amadurecido bastante durante aqueles anos. A falta constante dos pais o fez tornar-se independente mais cedo. Havia tido aulas com os melhores professores que o dinheiro poderia pagar, chegando a ir para Madrid estudar nas melhores escolas. O Qian passou três anos vivendo na capital do país, a fim de ganhar conhecimentos sobre os negócios da família e firmando amizades. Ele era o orgulho dos progenitores, mesmo que só recebesse cartas três vezes por ano.

Apesar de estar tendo uma vida agradável em Madrid, sentiu a necessidade de retornar a Sevilha quando soube que a sua mãe estava doente. A mulher era o mais próximo que tinha de uma família, não tinha muitas memórias de carinho — pela sua criação rígida —, mas tinha apego pela mais velha. Nada o prendia à capital.

[...]

Por ser filho de um importante latifundiário da região, todos conheciam a família Qian. Enquanto rumava para a propriedade dos pais a cavalo, era reconhecido por grande parte dos moradores da cidade. Em poucos dias começaria a Feria de Abril e todos ajudavam a decorar as ruas, atraindo diversas pessoas pelas redondezas. Kun lembra-se de como as roupas coloridas, danças e música tomavam conta da cidade. Tinha boas lembranças de quando era criança e frequentava a praça da Espanha.

Kun gostava de andar a cavalo, o vento batendo contra o seu rosto e balançando os seus cabelos lhe dava uma agradável sensação de liberdade, assim como lhe agradava os olhos ver toda a beleza da natureza que cercava a cidade. Quando finalmente chegou na sua antiga residência, deixou o cavalo com um dos funcionários, fazendo carinho no pescoço do animal antes de se afastar. Entrou no casarão que passou boa parte da sua infância. Parecia que nada havia mudado desde que havia partido, sentindo aquele sentimento de familiaridade.

O rapaz caminhou em passos lentos até o quarto que os seus pais costumavam dividir, segurando a maçaneta de madeira por alguns segundos enquanto hesitava, estava temeroso sobre o que encontraria ali. As cartas de seu pai alertavam sobre o estado de saúde delicado de sua mãe. Respirou fundo algumas vezes e abriu a porta.

Llegaste un día

Para cambiarme de pronto la vida

Dibujamos todas las salidas

Llegaste y supe ser feliz

A caravana se aproximava mais uma vez de Sevilha depois de tanto tempo. Entre cantorias, músicas antigas e risadas gostosas, estavam cada vez mais próximos do seu destino. O rapaz esbanjava o seu sorriso para todos, encantando os demais com a sua presença marcante.

— ¿Cuánto tiempo no lo veo sonriendo así? — comentou uma das mulheres.

— Es sólo la nostalgia, mama — respondeu com um brilho diferente no olhar.

E ele continuou a sorrir, sentindo o vento balançar os cabelos negros. O rapaz estava mais velho e todos os seus traços haviam amadurecido. A roupa colorida e o característico lenço, entregavam a sua origem. Os anos haviam se passado, porém ainda havia os olhares acusadores e de medo na sua direção. Entretanto, havia aprendido que a ignorância ao desconhecido causava aquele efeito nas pessoas. Nada lhe tirava o orgulho do sangue que corria nas suas veias.

Os viajantes continuaram o seu percurso por mais algumas horas enquanto aproveitavam a presença uns dos outros com as suas próprias canções.

Para la libertad, sangro, lucho, pervivo

Para la libertad, mis ojos y mis manos

Como un árbol carnal, generoso y cautivo

Doy a los cirujanos

Para la libertad siento más corazones

Que arenas en mi pecho

Dan espumas mis venas

Y entro en los hospitales

Y entro en los algodones

Como en las azucenas

Kun segurava a mão da mais velha, vendo como a sua pele estava pálida e aparentava estar fraca.

— Senti saudades, filho — sussurrou.

— Eu também, mama. — Fez uso da forma carinhosa como sempre se referiu a sua mãe. Acariciou os fios macios, alguns já estavam grisalhos pela idade. — Onde está o meu pai?

Ouviu um suspiro baixo.

— Não o vejo desde ontem, meu filho. — O tom era baixo, porém, podia notar a tristeza contida nele.

— Eu vou estar aqui — garantiu.

[...]

Era noite, Kun deveria estar nos seus aposentos, mas sentia-se incapaz de dormir naquele momento. O estado de saúde de sua mãe lhe preocupava, pensou em levá-la até a capital, porém temia que a mulher não aguentasse a longa viagem. A sua mente estava tão confusa e cheia, sentia-se sufocado. Exatamente como quando era criança e fugia para os campos da grande propriedade. Estava cansado de virar de um lado para outro, quando finalmente levantou-se e calçou as botas. Precisava sair para clarear a mente e respirar um pouco de ar fresco.

O caminho ainda era o mesmo que se lembrava, mesmo que estivesse escuro e houvesse pouca iluminação pelo percurso. Enquanto se aproximava do lugar que costumava se esconder, sentia o cheiro agradável de terra molhada e um pouco de lama grudar nos seus sapatos. A escuridão da noite não o assustava, o som das cigarras o agradavam

Se pinta de colores toda mi alma

Con esa dulce luz de tu mirada

Y al verte sonreír vuelvo a tener fe

A música podia ser ouvida a alguns metros de distância, junto da cantoria antiga e das risadas altas. O colorido não enganava as suas origens, as mulheres mais velhas usavam lenços na cabeça, umas com os cabelos soltos e outros trançados, as jovens usavam diversos enfeites de fitas, moedas e flores, exibindo brincos e pulseiras. Os homens com suas camisas bufantes e coloridas, junto dos coletes e echarpes, correntes no pescoço e anéis. O tilintar das moedas eram vistos como sinônimo de proteção e atraía atenção para aqueles que dançavam em meio a roda.

Ten sentia o seu corpo ser guiado no compasso da música, o cansaço parecia não chegar nunca. O seu coração vibrava conforme o ritmo da cantiga e dos instrumentos improvisados. Dançava junto dos seus e mantinha os olhos fechados, aproveitando a sensação gostosa que os movimentos da dança proporcionavam.

Em um determinado momento, sentiu-se sendo observado. O suor escorria pela lateral do seu rosto, mas ainda estava animado. Procurou pelo seu observador, notando ao longe, uma figura bastante familiar. Havia poucos ali, a maioria havia ido descansar nas suas tendas. O pouco de álcool que havia ingerido atrapalhava o seu raciocínio, mas um sorriso cresceu nos seus lábios ao reconhecer o homem parado a metros de distância. Aproveitou que não estava sendo observado pelos demais e seguiu até o homem que tanto lhe observava.

Kun havia sido atraído pela música, lembrando-se do velho amigo de infância. O seu coração se aqueceu ao reconhecer a figura esguia dançando. Fazia tantos anos que não se encontravam e ficou feliz por poder reencontrá-lo. Ainda guardava o lenço no meio das suas coisas mais importantes. Quando estavam próximos, o cigano o puxou para um abraço caloroso.

— Eu senti a sua falta!

— ¡Senti tu falta!

Falaram juntos em meio ao abraço e sorriram, sentindo os seus corações mais leves. Havia muito o que ser conversado e eles tinham a noite toda para colocarem os assuntos em dia. Por enquanto, restava a Kun observar como Ten havia amadurecido os seus traços naquele tempo e tornando-se tão encantador aos seus olhos, junto das roupas coloridas tão destoantes das suas.

Sorriam um para o outro a ponto de sentirem as suas bochechas doerem, o sono tentava atrapalhá-los, porém continuavam naquela conversa calorosa e regada de saudade até o dia amanhecer.

Libertad Aunque Tardía [kunten]Onde histórias criam vida. Descubra agora