Emoções

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As pernas doíam muito quando eram movidas. Delas, saltavam grossas veias que deformavam a pele com erupções volumosas. Recostado no sofá, olhou para o aparelho de som com todas as luzes piscando. Vários dispositivos sofisticados acionados por minúsculas teclas só para ouvir música.

Ele era do tempo do bom toca-discos. Comprou o melhor e foi recebido em meio a muita festa quando chegou em casa. Nada de carrosséis, programação de faixas, níveis de equalização, toda essa parafernália moderninha que o neto sempre falava quando punha o disquinho, qual era mesmo o nome? Ah, sim: "CD", para tocar.

Um "compact disc digital audio remastered". Tudo isso para ouvir "Emoções" de Roberto Carlos. Coisa que fazia simplesmente colocando a agulha em cima do seu velho LP de vinil, girando em cima da plataforma emborrachada do toca-discos. Agora desejava ouvi-la outra vez e o menino não estava lá para acionar as... como a neta as chamou mesmo? "Tecnochatices". O casal de netos sempre o ajudava nesse pequeno desejo de enorme prazer, mas ambos estavam na escola.

Uma experiência muito dolorida quando a única filha e o genro o declararam muito velho para viver sozinho. Repentinamente, sua privacidade foi invadida, roupas embaladas, fotos e quadros preciosos e insubstituíveis, descartados ou vendidos. O golpe maior veio quando um dono de sebo adquiriu a valiosíssima coleção de LPs e o toca-discos, impressionado com a conservação.

Ganhou um quarto na casa do genro e seus títulos prediletos foram readquiridos na forma do detestado disquinho. Os netos tentaram ensiná-lo a usar o espalhafatoso aparelho. Chamavam de "CD player" e era uma complicação de botões. Talvez seu próprio avô dissesse o mesmo quanto ao toca-discos.

A filha insistia para que não se movesse muito. "O coração não aguenta" Repetia sempre. O genro providenciara um tratamento para as varizes. Tudo ia bem, mas sentia falta da própria casa. Seu coração. Se soubessem tudo o que já aguentara. Paixões e perdas, todas causadas por mulheres.

Como as adorava. Tivera inúmeras, dos mais variados tipos: loiras, morenas, ruivas, mulatas, nisseis, parecidas com índias e amara todas com a mesma intensidade. Quarenta anos trabalhando como caminhoneiro, centenas de amores e histórias para contar. Esposa e filha sempre aguardando sorridentes em casa. A mulher nunca o questionou quanto à fidelidade. Nunca quis ter certeza, aceitava-o como era, sempre o recebendo afetuosamente.

Ele a recompensou com carinho, presentes e compreensão. Dois anos após seu falecimento e a saudade só aumentara. Sabia que era seu único amor imortal. Atualmente, sentindo o peito arder e os pensamentos tentando fugir, queria, mais do que tudo, ouvir a canção predileta mais uma vez.

Respirar ficou difícil, o peito e os braços pesavam muito. Num esforço descomunal, alcançou o controle remoto do infeliz aparelhinho. O disquinho poderia ter sido esquecido dentro do compartimento, então haveria chances de fazê-lo tocar.

Numa melhora repentina, conseguiu algo inédito: lembrar de todas as lições dos netos. Abriu a gaveta apertando a tecla "open/close". Sim, o CD de Roberto Carlos estava lá. Pressionou a tecla mais uma vez para fechá-la. Verificou o número da faixa na contracapa e o selecionou usando a tecla "select". Pressionou o "play" e conseguiu realizar o maior desejo.

"Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo...". Isso mesmo, ele viveu milhares de momentos assim! "Olhando pra você e as mesmas emoções sentindo...". Podia sentir todas de novo, com a mesma intensidade da juventude. Cada novo amor conquistado, as dores das partidas e o êxtase do retorno aos braços aconchegantes da esposa e da filha. "São tantas já vividas, são momentos que eu não esqueci". Nunca as esqueceu, nenhuma delas, podia contá-las detalhadamente.

Continuou ouvindo a faixa, sorrindo e sentindo o corpo ficar mais e mais leve. Respirava fracamente e a visão começou a escurecer. Alguém sentou ao seu lado. Virou a cabeça devagar e sorriu ao ver a falecida esposa, jovem, bonita e alegre como era quando a conheceu. Ela estendeu a mão e disse: "Venha, temos que ir". Acenou pedindo para que aguardasse. A canção estava acabando e queria ouvir a frase que definia tudo o que sentia. "Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi". Certamente!

Marcio Mendes.

Escrito em 2003.

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