la vie en blue

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Ele canta toda noite no mesmo horário. Às vezes é um blues antigo, às vezes R&B moderno, outras, Jazz. Às vezes é feliz, outras terrivelmente triste. Bonito de uma maneira particular.

Ella Fitzgerald. Aretha. Louis Armstrong. Lauryn Hill.

Ele canta como se rasgasse pedaços de alma e jogasse pela janela, que partidos caem, atingindo qualquer desavisado.

Eu me debruço sobre a sacada, fascinado. Logo eu que não entendo de blues.

Fantasio seu nome e sua história. Por que canta assim? Não sei seu rosto, mas desenhos seus traços de olhos fechados.

Sua caixa torácica é um autofalante que ressoa Seul inteira. O concreto e aço dessa cidade é menos vazio quando ele canta.

Ele empresta significado às coisas.

A moça que vai lá embaixo não ouve, não presta atenção, mas tem alguém cantando.

Eu me sinto menos sozinho. Estou longe do mar, longe de casa, mas quando ele canta eu sei que alguém nesses vinte milhões de habitantes ouve o que eu ouço, vê o que eu vejo.

É um segredo, ele não sabe.

Um dia desses eu o acompanhei. Baixinho. Não queria que ele ouvisse, eu cantava para mim a melodia conhecida de uma canção batida.

Em algum momento a voz soltou de mim, como se há muito estivesse encarcerada, voou alto, longe, livre. Num grito de solidão e liberdade. Como se pudesse ser ouvida do outro lado do país, lá em casa, mais alto que o barulho das ondas do mar de Busan.

É claro que ele ouviu.

Cantamos juntos.

Agora não era mais segredo. Ele cantava, eu ouvia. Eu cantei, ele me ouviu.

Uma cumplicidade que eu, ele e a noite dessa cidade dividimos.

No dia seguinte ele não apareceu para cantar. Eu esperei e esperei, temendo que minha súbita vontade de alcança-lo tenha o afastado de mim. Horas inteiras passaram-se. Os carros amontoados no cruzamento riram de mim, sarcásticos.

É solitário aqui.

Um homem que fez um amigo sem rosto, sem nome e sem reprocidade.

Vai ver ele tinha um compromisso.

Eu fui dormir pensando em todas as coisas que dizem que se deve fazer para melhorar a vida. Fiz listas mentais de hábitos, dietas e ideias.

Invista em você. Seja saudável. Viva seus sonhos. Conquiste seu primeiro milhão. Seja bonito.

Eu não queria nada disso. O que eu queria era cantar como se fosse livre outra vez e queria que meu único cúmplice ouvisse.

Bob Dylan, David Bowie, Queen. Toda a música que me fez a vida toda, não me parecia suficiente nas madrugadas insones. Eu troquei Eddie Van Halen por B.B. King sem perceber.

No dia seguinte eu fingi que não estava esperando. Peguei um livro qualquer que eu já tinha abandonado outras vezes. Sentei no sofá, depois sentei no chão, depois fui pra varanda.

Folheei o livro, passei os olhos pelas palavras, mas não li.

Nada de novo.

Esperar dói.

Foi assim no outro dia, no outro e no outro. Eu pensava em muitas coisas para espantar a solidão.

Talvez se eu pintasse as paredes do quarto, ou se eu ligasse para o meu amigo de infância, se eu passasse um tempo lá em casa, se eu me aventurasse numa festa cheia de desconhecidos... Se eu...

Eu queria que alguém entendesse.

Os amigos quando vem, ficam pouco. Falam de si mesmos, contam histórias sem importância sobre pessoas que eu nunca vi, falam, falam, falam. Às vezes eles fingem também. E tudo bem, porque nessa vida a gente aprende muito cedo a fingir.

Eu sinto falta deles de qualquer forma. Quando as coisas eram simples e a maior aventura do mundo era beber a noite da cidade e a madruga era convite, não tortura.

Eu sinto falta dele.

Porque quando ele canta, eu acho que entendo.

E se ele voltasse?

Eu diria que senti sua falta?

Não, que coisa estranha seria bater em sua porta. Não. É no plano dos não-acontecimentos que moram as histórias mais extraordinárias.

Eu cantaria como da última vez. E meu canto diria: olá, bem-vindo de volta, como está?

Quando cansei de esperar, passei a cantar sozinho.

Primeiro no chuveiro, sentindo a água quente arrancar a pele e a tensão.

Depois na varanda, cantando para as luzes artificiais da cidade, para o rio ancestral que corre lá embaixo ladeado de asfalto e solidão.

Eu cantei um blues para a noite.

Parei a canção no meio em um suspiro, me fugiu a letra.

Quando menos espero uma voz continua.

Meu coração se agita no peito, sacode como se estivesse hibernado há meses. Eu seguro esse sentimento no peito, não querendo deixar ir embora.

Eu fecho os olhos absorvendo o som da sua voz.

A ventania da noite de outono o cumprimenta também.

"Bem-vindo de volta", eu falei sem saber se ele conseguia me ouvir.

"Obrigado" a voz grave respondeu.

Eu não pude dizer mais nada. Fui dormir feliz, carregando um sorriso insistente no rosto. Existia qualquer coisa na voz dele que deixava essa caixa de concreto menos vazia, menos solitária.

Sua voz chacoalhou minha apatia, parecia um ponto sem retorno.

No dia seguinte, reuni a coragem e a falta de senso de ridículo para subir até seu andar. Parei em frente à sua porta.

A pulsação audível em meu pescoço.

As mãos seguravam um bilhete escrito às pressas: "eu gosto de te ouvir."

Eu respirei fundo.

"Você já fez coisas muito mais estúpidas, Jungkook" disse a mim mesmo para encorajar.

Deixei o bilhete embaixo da porta.

As horas de espera me fizeram morrer de novo. De um jeito bom.

Pra morrer é preciso estar vivo. A antecipação bombeou sangue em minhas veias de novo.

Espero que o bilhete sirva de incentivo para ele cantar de novo essa noite.

Antes que o sol se pusesse, no entanto, a campainha tocou. Pelo olho mágico, observei o homem do outro lado.

Uma bermuda larga, blusa amarela e boné virado para trás. Ele mordia os lábios.

O rosto sem forma da minha imaginação começa a ser desenhado.

Minhas mãos suam num nervosismo quase infantil quando abro a porta. Ele me estende um bilhete dobrado.

"Eu gosto de te ouvir" escrito numa caligrafia corrida diferente da minha.

Os olhos escuros me encaravam com expectativa. Eu esperei o liquidificador de expectativas parar de bater sem parar dentro do meu cérebro.

É como desembalar um presente na noite de natal, como descobrir um inseto colorido na parede quando criança, como receber uma notícia boa.

A pulsação acelerada dentro do peito me lembra que vida escorre pelas veias.

Respirei como quem toma uma decisão.

"Quer cantar comigo?"

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⏰ Última atualização: Jul 06, 2021 ⏰

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