O Expresso dos Corvos

103 14 24
                                    

Um balanço forte do trem acordou o homem na cabine. A luz amarela fez seus olhos arderem, como se dormisse há muito tempo. O ar pesado o fez tossir.

— Com licença. — Ele se dirigiu à jovem garota sentada a sua frente. — Sabe me dizer qual a próxima parada?

— Este trem é expresso, senhor — a jovem respondeu. — Não há paradas.

A garota usava um vestido azul, bem adornado, e sapatos de couro marrom. Sua pele era escura, assim como seu cabelo, que estava preso com uma faixa rosa. Ela não tinha nenhuma bagagem, mas segurava um papel dourado na mão esquerda.

O homem olhou para o papel, mas não deu atenção.

— E sabe me dizer para onde vai? — ele perguntou. — O trem, quero dizer.

— Não tenho certeza, senhor.

A resposta causou estranheza no homem. Ele se deu conta de que não se lembrava como havia chegado ali. Olhou pela janela, mas não viu muita coisa. O céu estava nublado, impedindo a lua e as estrelas de iluminarem e paisagem. O breu da noite só lhe deixava saber que estava longe das luzes da cidade.

Ele passou os olhos pela cabine. Era muito antiga, mas estava em bom estado. As paredes e o teto eram acolchoados com tecido carmesim, rico em detalhes. O piso de madeira escura era rígido, daquele tipo que não range ao se caminhar sobre ele. Os bancos eram confortáveis e a luminária na parede trazia um clima soturno ao ambiente.

O homem passou a mão nos bolsos a procura de seus cigarros, mas não os encontrou. Se deu conta de que não estava com nenhum de seus pertences. Possuía apenas a roupa do corpo e seu chapéu coco no colo. Fora ele roubado?

"Não," pensou, "me lembraria disso." Ele pegou o chapéu do colo e o colocou na cabeça, numa tentativa inconsciente de obter algum controle sobre a situação.

— Como você se chama, minha jovem? — ele perguntou à garota.

— Me chamo Anelise, e o senhor?

— Pedro. Mas pode deixar o "senhor" de lado. — Pedro não era fã de formalidades. — Desculpe a intromissão, mas você viaja sozinha?

— Sim. E não. — A garota sorriu. — Embarquei no trem sozinha, mas agora tenho companhia. Não estamos na mesma cabine?

— Estamos. — Pedro devolveu um sorriso sem graça. — Mas gostaria de saber para onde....

Um grito o interrompeu. Veio do lado de fora da cabine. Pedro se levantou e foi em direção à porta, mas Anelise o segurou pelo braço.

— Por favor, não saia.

Pedro franziu a sobrancelha, estranhando o gesto da garota.

— Devemos ficar dentro das cabines. — Ela continuou. — Foi o que disse o condutor.

— O condutor? — Pedro achava a coisa toda cada vez mais bizarra. — Alguém gritou lá fora, pode estar precisando de ajuda.

— Não acho que poderá ajudar. — Os olhos da garota estavam aflitos.

— Sou médico — disse Pedro —, é meu dever.

Anelise finalmente soltou o homem.

— Tudo bem, mas tome cuidado. — Ela o advertiu.

Pedro assentiu e foi até a saída da cabine. Encostou o rosto na pequena janela para ver se havia algum movimento ali. Não avistou ninguém e abriu a porta. Ao sair, viu um homem de costas no fim do corredor. Ele o chamou:

— Senhor, por favor...

O homem se virou, e sua imagem fez Pedro congelar. Vestia uma capa preta que cobria todo o corpo, deixando apenas o rosto visível. Mas não era um rosto humano. Havia um bico onde deveria haver a boca e o nariz. Penas negras tomavam o lugar da pele. E os olhos eram pequenos e amarelos e emanavam maldade.

O Expresso dos CorvosOnde histórias criam vida. Descubra agora