O dia lentamente se desfaz em noite, espalhando cinzas de cigarro e memórias do passado ao chão como cacos de vidro. A Lua emerge imponente após mais uma vitória contra o Sol, para confortar as almas dos atormentados, que uivam como lobos, apaixonados pela luz do luar. A bela sonata de Ludwig van ecoa em meus ouvidos, tão divina quanto as estrelas, tão sublime quanto a imensidão do mar. Ah, as estrelas... Tão pequenas, mas ao mesmo tempo tão brilhantes quanto os meteoros em chamas que rasgam o manto escuro do céu. As memórias de quem um dia eu fui me despedaçam, enquanto as lágrimas descem secas pela minha face, calma e silenciosamente, como a brisa do vento que eu jamais senti.
Porque a noite era a única coisa que me reconfortava com a sua lembrança. Em via de esquecê-la, parei de sonhar, deixei de fumar, adentrei a escuridão. Por vezes, eu sentia como se novamente mergulhasse no calor do seu mais sincero abraço, mas de repente notava que não havia nada além das sombras atrás de mim. Não me dei conta de que era inevitável afastar a cor de seus olhos da minha cabeça. Eu a via flutuar em seda e doce aroma na solidão dos meus sonhos, quando um eco murmurou seu nome de volta para mim.
Um rastro de luz negra ganhou forma no canto do meu olho, e quando me virei para ver o que era tal assombração que há de mais e mais, e então eu a vi. O fantasma de olhos castanho-claros, quase esverdeados, o sorriso triste de uma vida que eu sacrificaria a minha própria para salvar, os restos apodrecidos da carne onde os vermes se rastejavam furiosamente, e o véu de seda que cobria parcialmente seu rosto, esvoaçando ao vento, tão leve quanto o ar. Ela, que antes andava em beleza, como a própria noite, agora estava ali, de pé, em ossos velhos, diante de mim.
A visão de minha amada me fez cair em prantos, em joelhos, em dores reprimidas de outrora. As lágrimas corriam doces pelo rosto apodrecido, como o aroma das flores do jardim suspenso, doces como sua voz que clamava meu nome em palavras de tristeza e sofrimento. Meus pesadelos ganharam vida, na visão de tudo que um dia eu amei, tudo que um dia foi real, mas que agora eram traços indesejados que pertenciam ao mundo dos mortos.
Qual era a saída? Qual era a porta que eu deveria abrir para fugir das lembranças que me perseguiam noite após noite, e que agora ganharam vida na figura espectral que se assemelha tanto a ela? A voz suave e ao mesmo tempo sepulcral me dizia que este era o fim da vida, que um dia a sonata iria acabar, e só havia uma forma de resolver isto: miserar. Não entrei em desespero, pois a visão mórbida daquela mulher me fez aceitar o meu destino. E finalmente, eu soube o que devia fazer, o que deveria ter feito há muito tempo, no mesmo dia em que eu a matei.
O frio intenso da noite que me açoitava e me rasgava a pele não importava mais. Não me importavam nem a Lua e sua beleza nauseante, nem os lobos que uivariam cada vez mais na escuridão da noite. Ou o piano velho e empoeirado que fazia nascer a minha sonata ao luar, ou as flores que morreriam secas como lágrimas tristes, sepultando meu corpo e me unindo à minha amada, e nem os vermes que agora iriam rastejar pela carne exposta. Subi no pequeno banco de madeira. A corda estava firme. E, antes dela desaparecer, a última coisa que vi foram seus lábios apodrecidos a mexerem-se desnorteados como o vento e nada mais, e duas últimas palavras ecoaram mudas pelo jardim: "nunca mais".
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Tormenta
ParanormalUm pequeno conto trágico, inspirado em "O Corvo", de Edgar Allan Poe.