As considerações ou reflexões até agora vêm sendo desdobramentos de um primeiro saber inicialmente apontado como necessário à formação docente, numa perspectiva progressista. Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições, um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho - a ele ensinar e não a de transferir conhecimento.
É preciso insistir: este saber necessário ao professor - que ensinar não é transferir conhecimento - não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razoes de ser - ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa ser constantemente testemunhado, vivido.
Como professor num curso de formação docente não posso esgotar minha prática discursando cobre a Teoria da não extensão do conhecimento. Não posso apenas falar bonito sobre as razoes ontológicas, epistemológicas e políticas da Teoria. O meu discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da teoria. Sua encarnação. Ao falar da construção do conhecimento, criticando a sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a construção, estar envolvendo os alunos.
Fora disso, me emaranho na rede das contradições em que meu testemunho, inautêntico, perde eficácia. Torno-me não falso quanto quem pretende estimular o clima democrático na escola por meios e caminhos autoritários. Tão fingido quanto quem diz combater o racismo mas, perguntando se conhece Madalena, diz: "Conheço-a é negra mas é competente e decente." Jamais ouvi ninguém dizer que conhece Célia, que ela é loura, de olhos azuis, mas é competente e decente. No discurso perfilado de Madalena, negra, sabe a conjunção adversativa mas, no que contorna Célia, loura de olhos azuis, a conjunção adversativa é um não-senso. A compreensão do papel das conjunções que, ligando sentenças entre si, impregnam a relação que estabelecem de certo sentido, o de causalidade, falo porque recuso o silêncio, de adversidade, tentaram domina-lo mas não conseguiram, o de finalidade, Pedro lutou para que ficasse clara a sua posição, o de integração, Pedro sabia que ela voltaria, não é suficiente para explicar o uso da adversativa mas na relação entre a sentença Madalena é negra e Madalena é competente e docente. A conjunção mas aí, implica um juízo falso, ideológico: sendo negra, esperase que Madalena nem seja competente nem decente. Ao reconhecer-se, porém, sua decência e sua competência a conjunção mas se tornou indispensável. No caso de Célia, é um disparate que, sendo loura de olhos azuis não seja competente e decente. Daí o não-senso da adversativa. A razão é ideológica e não gramatical.
Pensar certo - e saber que ensinar não é transferir conhecimento é fundamentalmente pensar certo - é uma postura exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante dos outros e com os outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil, não porque pensar certo seja forma própria de pensar de santos e de anjos e a que nós arrogantemente aspirássemos. É difícil, entre outras coisas, pela vigilância constante que temos de exercer sobre nós próprios para evitar os simplismos, as facilidades, as incoerências grosseiras. É difícil porque nem sempre temos o valor indispensável pêra não permitir que a raiva que podemos ter de alguém vire raivosidade que gera um pensar errado e falso. Por mais que me desagrade uma pessoa não posso menosprezá-la com um discurso em que, cheio de mim mesmo, decreto sua incompetência absoluta. Discurso em que, cheio de mim mesmo, trato-a com desdém, do alto de minha falsa superioridade. A mim não me dá raiva mas pena quando pessoas assim raivosas, arvoradas em figuras de gênio, me minimizam e destratam.
É cansativo, por exemplo, viver a humildade, condição "sine qua" do pensar certo, que nos faz proclamar o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e anunciar a superação que sofremos.