Parte I TORNANDO-SE PERFEITA - NOVA PERFEIÇÃO

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O céu de início de verão tinha cor de vômito de gato.

        Obviamente, Tally pensava, quando a dieta do seu gato se resume por um bom tempo a ração sabor salmão. Movendo–se rapidamente, as nuvens até lembravam peixes, desfeitas em escamas pelos ventos das altitudes elevadas. À medida que a claridade se ia, lacunas azuis cor do mar apareciam, como um oceano de cabeça para baixo, frio e infinito.

        Num verão qualquer, um pôr do sol como esse teria sido lindo. Mas nada era lindo desde que Peris havia se tornado perfeito. Perder seu melhor amigo é uma droga, mesmo que apenas por três meses e dois dias.

        Tally Youngblood esperava pela noite.

        Ela podia ver Nova Perfeição da janela. Os prédios onde as festas aconteciam já estavam todos iluminados. Linhas sinuosas destacadas por tochas indicavam os caminhos por entre os jardins. Balões de ar quente puxavam suas cestas em direção ao céu rosado levando passageiros que atiravam rojões de artifício contra outros balões e paraquedistas que passavam. O som de risos e música vinha como uma pedrinha sobre a água, arremessada com a força certa, as pontas ferindo os nervos de Tally.

        Nos limites da cidade, isolada pela forma oval do rio, tudo estava escuro. Àquela hora, todos os feios estavam dormindo.

        Tally tirou seu anel de interface e disse:

        – Boa noite.

        – Bons sonhos, Tally – respondeu a sala. Ela mastigou uma pílula de escovar os dentes, afofou os travesseiros e enfiou um antigo aquecedor portátil – um que gerava tanto calor quanto um ser humano do tamanho de Tally – embaixo dos lençóis.         

            E então saiu de fininho pela janela.         

        Do lado de fora, com a noite finalmente tomando o céu por completo, Tally se sentiu bem. Talvez fosse um plano idiota, mas qualquer coisa era melhor do que outra noite acordada na cama, afogada em lamentações. No familiar caminho coberto de folhas que levava à beira d'água, era fácil imaginar Peris andando nas pontas dos pés atrás dela, segurando o riso, pronto para uma noite espionando os perfeitos. Juntos. Ela e Peris havia aprendido a enganar o inspetor aos 12 anos, uma época em que parecia que o três meses de diferença entre suas idades nunca teriam importância.

         – Amigos para sempre – murmurou Tally, tocando a pequena cicatriz na palma de sua mão direita.

        A água reluziu por entre as árvores. Ela podia ouvir as pequenas ondas produzidas por uma embarcação no rio se chocando contra a margem. Agachou–se atrás dos juncos. O verão era a melhor época para as expedições de espionagem. A grama estava alta, nunca fazia frio e não era preciso encarar um dia inteiro e aula no dia seguinte.

        Obviamente, agora Peris podia dormir o quanto quisesse. Era apenas uma das vantagens de ser perfeito.

A antiga ponte se estendia grandiosa por sobre a água. Sua imensa estrutura de metal estava escura como o próprio céu. Tinha sido construída há tanto tempo que suportava seu próprio peso, sem ajuda de qualquer estrutura suspensa. Em um milhão de anos, quando o resto da cidade estivesse em escombros, a ponte provavelmente continuaria de pé, como um osso fossilizado.

        Ao contrário das outras pontes que levavam à Nova Perfeição, a antiga não falava – e, mais importante, não denunciava invasores. No entanto, mesmo em seu silêncio absoluto, sempre parecera sábia aos olhos de Tally; serenamente astuta, como uma árvore ancestral.

        Agora seus olhos estavam totalmente acostumados ao escuro. Precisou de poucos segundos para achar a linha de pescar amarrada à pedra de sempre. Ela deu um puxão e ouviu o barulho da corda se virando onde ficava escondida, entre as colunas da ponte. Continuou puxando até que a linha invisível se transformou numa corda úmida cheia de nós. A outra ponta permanecia atada à estrutura metálica da ponte. Tally esticou bem a corda e a amarrou à árvore de costume.

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