capítulo 2

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SAM-9° C

Eles arrancaram a menina do balanço de pneu que havia no quintal e a arrastaram para a floresta: seu corpo deixou um leve rastro na neve, uma trilha do mundo dela para o meu. Eu vi tudo acontecer. Não impedi.

Era o inverno mais longo e mais frio da minha vida. Dia após dia sob um sol pálido e inútil. E a fome fome que queimava e corrola, soberana, insaciável. Nada se moveu naquele més, a paisagem congelada num quadro destituido de cor e de vida. Um de nós havia levado um tiro ao tentar roubar o lixo largado por alguém, então o resto do bando continuou na floresta e foi aos poucos ficando faminto, esperando pelo calor e por nossos antigos corpos. Até que encontraram a menina. Até

que a atacaram. Eles se curvavam em volta dela, rosnando e abocanhando, disputan do para dar a primeira mordida.

Eu vi. Vi seus corpos estremecendo de avidez. Eu os vi puxar o corpo da menina para todos os lados, a neve debaixo dela diminuindo com o movimento. Vi focinhos manchados de vermelho. Mesmo as sim, não impedi.

Eu era o chefe da alcateia-Beck e Paul deixaram isso bem claro portanto poderia ter feito alguma coisa na mesma hora, mas recuei tremendo de frio, com neve até os tornozelos. A menina tinha um cheiTo morno, vivo, sobretudo humano. O que havia de errado com ela Se estava viva, por que não lutava!

Eu sentia o cheiro de seu sangue, um cheiro morno e brilhante n -eu não comia quele mundo morto e frio. Vi Salem se encolher e tremer enquanto ras gava suas roupas. Meu estómago se contrain, dolorido, havia muito tempo. Eu queria afastar todos os lobos para me colocar perto de Salem e fazer de conta que não sentia aquele cheiro humano nem ouvia seus débeis gemidos. Era tão pequena sob a nossa selvageria, sob a alcareia que a espremia, querendo trocar sua vida pela nossa

Com um rosnado e um arreganhar de dentes, avancei. Salem rostou de volta para mim, mas minha posição era mais alta que a dele, apesar da minha fome e da minha juventude. Paul investiu ameaçadoramente para me fazer recuar.

Eu estava perto dela, e ela olhava o céu infinito com expressão dis tante. Talvez morta. Toquei sua mão com o focinho. O cheiro da palma

da mão, açúcar, manteiga e sal, me lembrou outra vida.

Então, vi seus olhos.

Acordados Vivos.

A menina olhou firme para mim, seus olhos encarando os meus com

terrivel honestidade.

Recuei, retrocedi, recomeçando a tremer-mas desta vez, não era a raiva que me sacudia.

Seus olhos nos meus olhos. Seu sangue no meu rosto. Eu estava me despedaçando, por dentro e por fora.

Sua vida.

Minha vida.

A alcateia se afastou de mim, desconfiada. Rosnaram para mim, não mais um deles, e mostraram os dentes para a presa. Eu achei que ela era a garota mais bonita que eu já tinha visto, um minúsculo e ensanguen

tado anjo na neve, e eles iam destruí-la.

Eu vi. Eu a vi, como jamais havia visto algo antes.

E impedi

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