- Ai! - exclamou Thierry assim que a ponta da agulha perfurou-lhe o dedo. Ele já estava exausto de tanto costurar e descosturar botões em um velho casaco de frio que seu pai ordenou que reformasse.
Levando o polegar machucado à boca, pressionou o ferimento com a língua a fim de estancar o pequeno sangramento. O gosto metálico de sangue espalhou por sua boca fazendo-o comprimir a sobrancelhas em sinal de repulsa.
- Deveria tomar mais cuidado. Um dedo ferido prolonga e dificulta o trabalho. Sem contar no incômodo. - aconselhou o senhor Laforet, pai de Thierry.
- Como se este trabalho já não fosse incômodo o suficiente. - resmungou Thierry. Há tempos que não aguentava mais acordar cedo e sair com o pai para caminharem até o centro da cidade onde se localizava alfaiataria e fábrica de costuras da família. - Por que não podemos usar uma daquelas geringonças das costureiras? - perguntou, referindo-se às máquinas utilizadas pelas mulheres que trabalhavam no andar de cima, local onde um dia fora a sua casa.
- Máquinas de costura não pregam botões, Thierry. - explicou o homem, enquanto organizava algumas papeladas. - E eu não quero que você use as "geringonças" das costureiras. As máquinas podem até facilitar e acelerar o trabalho, mas as melhores roupas ainda são feitas por mãos humanas.
Com um suspiro, Thierry voltou-se novamente para o casaco em suas mãos. Os botões novos nãos pareciam firmes e três deles estavam tortos em comparação aos outros, as mangas estavam muito mais largas e compridas do que deveriam depois de Thierry tentar ajustá-las para envolverem braços maiores e a costura do bolso frontal estava totalmente visível. Não era difícil compreender o porquê de seu pai preferir que ele reformasse uma roupa velha ao invés de gastar tecido ensinando-o a fazer uma nova. Definitivamente não nascera para aquilo.
O sininho pendurado na porta da frente badalou assim que três pessoas entraram no local. Thierry disfarçou o incômodo ao perceber que Nicole, sua irmã caçula, trouxera consigo suas amigas Augustine e Edith.
- Bom dia, senhores! - cumprimentou Augustine, já entrando à procura dos vestidos expostos no local. - Algum modelo novo?
- Augustine, viemos acompanhar Nicole, não comprar vestidos! - repreendeu-a sua irmã Edith.
- Estou apenas juntando o útil ao agradável. Ou quer que eu vá ao baile da senhora Arnaud com um de meus vestidos velhos? Quanto custa para finalizar este aqui? - perguntou a moça ao senhor Laforet, indicando o vestido semipronto que ela observava com interesse.
- Chamarei a senhora Odette. - respondeu o alfaiate, referindo-se a uma das três costureiras que trabalhavam no andar superior. Elas eram responsáveis por toda a demanda feminina do estabelecimento.
- Agradecida!
Assim que o senhor Laforet saiu, Thierry fingiu prestar atenção ao seu "trabalho" para não ter que responder aos três animados "bom dias" direcionados a ele.
- Espero que não se ofendam com o meu irmão. Ele tem um gênio difícil. - desculpou-se Nicole quando as três estavam longe o suficiente de Thierry para que ele não as ouvisse.
- Já estamos acostumadas, querida. - falou Edith.
- Vocês acham que a senhorita Bovary irá com um vestido semipronto ou devo pedir que a senhora Odette me faça um novo?
- E que relação há nisso, Augustine?
- Não veem? A senhorita Bovary tem sido o centro das atenções em todos os lugares aonde vai. No último baile em que estivemos quase não fui chamada para dançar enquanto ela parecia estar sempre girando pelo salão.
- Ora essa, Augustine! A Marie não tem culpa de estar sempre sendo convidada para dançar. - defendeu-a Nicole.
- Ora, Nicole, você já se esqueceu da noite em que ela foi apresentada ao seu irmão e ambos dançaram três vezes seguidas? Uma moça de respeito jamais faria algo do tipo.
- Foram duas vezes seguidas! - Nicole apressou-se em corrigir Edith como sempre fazia. Não que fizesse muita diferença no final das contas. - O baile já estava próximo ao fim quando dançaram pela terceira vez.
- Devo admitir que até a compreendo neste quesito. Quem não passaria a noite inteira dançando com seu irmão se tivesse a oportunidade?
- Augustine! - sibilou Edith.
Nicole respirou fundo para diminuir o fulgor em seu rosto. Ela não entedia ainda o porquê de esforçar-se tanto para diminuir o impacto do ato de sua amiga, que sequer parecia importa-se com o que diziam sobre ela, e de seu irmão, que de tão isolado que vivia das outras pessoas, provavelmente nem tinha conhecimento das fofocas. Ela apenas se achava no dever de protegê-los até que os dois se casassem e tudo isso tivesse fim. Tudo bem que eles mal se conheciam e sequer estavam noivos, mas ela tinha certeza de que formavam um casal perfeito. Assim como ela e...
- Bom dia, senhoritas! - disse um rapaz alto e moreno ao entrar na alfaiataria.
- Bom dia, senhor Marlon! - respondeu Nicole assim que o reconheceu.
E por falar nele...
VOCÊ ESTÁ LENDO
As Sombras Que Se Escondem No Mundo
FantasySegundo livro da série O Mundo Que As Sombra Escondem