Margô não sabia bem o que estava fazendo, só queria deixar os pensamentos intrusos de lado. Quando voltou a si, notou que se distanciou demais da trilha. Tudo ao seu redor era verde, não havia como diferenciar o lado do qual viera de qualquer outro caminho ao redor.
As folhagens eram largas e muito densas, mal dava para ver três passos à frente. Arrastando os pés, para evitar tropeçar (o que lhe pareceu uma ótima estratégia baseada nos filmes que assistira), ela avançava vagarosamente pelo mar verde. Já estava cheia de arranhões quando, por fim, tropeçou caindo de cara no chão. Por sorte, as folhas amorteceram seu tombo chocando-se repetidamente contra seu rosto durante o trajeto até o solo.
A garota gemeu e praguejou antes de se levantar com dificuldade. Dois joelhos ralados e alguns arranhões, nada grave. Assim que espanou a terra de suas roupas, notou a figura que a observava. Sua respiração ficou presa na garganta à medida que seu corpo paralisava. Nebulous tinha razão, ela era a estranha naquele lugar.
A figura piscou para ela movimentando as membranas nictantes como as de um réptil. Era verde e escamoso com ausência de nariz, com exceção de duas fendas logo acima da boca. Os cabelos verdes estavam rodeados por uma tiara vermelha semelhante a uma coroa de louros feita de corais. Seis alongamentos de pele, três de cada lado da cabeça, saíam de sua testa. Os olhos eram muito humanos._ Você se machucou? _ A voz era doce e melodiosa, bem diferente do coachar que ela esperava ouvir.
_ Estou._ Uma pausa. _ Há... há quanto tempo você está aí? _ Ela não sabia mais o que dizer. Supôs que era uma pergunta bem neutra para começar.
_ Um tempinho. É bom vê-la novamente, Margô.
É claro. Ele também estava na reunião e, como Arti, tinha trocado suas roupas. O uniforme preto e discreto tinha sido substituído por um vestido verde com estampas de folhas que lhe cobria do tronco aos pés. Uma fina corda dourada servia para lhe marcar a cintura.
_ Desculpe, não o reconheci de imediato. Acho que foram muitas informações de uma vez.
Ele sorriu. Os dentes, para sua surpresa, eram perfeitamente alinhados e proporcionais. Aquilo a deixou mais relaxada por algum motivo.
_ Faz sentido. Pelo que Nebulous informou, seu povo é muito uniforme. Seu cérebro não está acostumado a analisar e decorar outros tipos de rosto. Levará um tempo para que comece a tomar novos pontos de referência. Me chamo Tintus à propósito.
_ Margô. _ Respondeu e Tintus riu.
_ Eu sei._ Outra pausa. Ele olhou ao redor._ Está desacompanhada?
Ela corou ao ser pega no flagra.
_ Na verdade, seu amigo... Arti? Estava me acompanhando.
O sorriso dele se tornou mais largo. Era bonito de um jeito próprio. A mesma beleza que se podia ver em um animal silvestre. Elegante e com presença.
_ Imagino que não suportou a carranca._ Ela retribuiu o sorriso. Ele a deixava confortável. Era diferente da energia fria e misteriosa de Nebulous, bem como da energia quente e irritadiça de Arti. Tintus era mais ameno, como uma brisa provocante e refrescante. Parecia o exato meio-termo entre os outros dois. _ O que acha de caminhar comigo ao invés disso? Eu estava cultivando algumas flores aqui perto. Gosta de flores?
_ Na verdade, nunca tive muito interesse_ disse sinceramente.
_ Entendo._ Tintus abriu a boca para falar mais alguma coisa quando um vulto alaranjado surgiu por entre as folhas e atingiu Margô.
Num emaranhado de pernas e braços, os dois corpos rolaram pelo chão até que o garoto ficasse por cima. Arti tinha o rosto corado e ofegava alto. Parecia mais furioso que o habitual.
_ Onde você pensa que vai, coisinha? _ Rosnou ainda sobre a menina. Suas mãos seguravam as dela e seu corpo a prensava no chão.
_ SAI DE CIMA DE MIM!_ Ela conseguiu gritar ao recuperar o fôlego. Ele apertou ainda mais seus pulsos.
_ Arti, não é assim que tratamos os convidados_ cantarolou Tintus colocando as mãos sobre os ombros do garoto.
Só então o loiro pareceu notar sua presença. Assim que sentiu o aperto suavizar, Margô tomou fôlego e o atingiu com uma cabeçada no nariz. O garoto uivou e saltou de cima dela. Enquanto Tintus gargalhava sem saber ao certo quem socorrer, a garota pôs-se de pé num salto. As aulas de auto-defesa talvez viessem a calhar.
_ Por essa você não esperava_ zombou Tintus. O loiro parecia pronto para pular na garganta dos dois. A cabeçada fora forte o suficiente para que uma linha de sangue escoresse de seu nariz.
_ O que você está fazendo com ela aqui? Nebulous disse que eu iria vigiá-la!
Vigiar. A palavra a atingiu com força. Então suas suspeitas eram reais. Estava mesmo sendo vigiada. A expressão de Tintus mudou para uma careta. Estava claro que evitavam o assunto em sua presença.
_ Eu vim observar seu PASSEIO com a convidada.
A represália pareceu lembrá-lo de que eles não estavam a sós ali. Olhou para Margô de soslaio. Ela os observava atentamente, captando cada palavra como se tentasse juntar peças em sua mente. Arti se aproximou de Tintus.
_ Ela está agindo de forma suspeita. Simplesmente saiu por aí caminhando sozinha. Pode mesmo ser uma espiã_ sussurrou.
A expressão divertida se fora, substituída por anos de experiência.
_ Não sabemos ainda. Até lá, você deve parar com o comportamento suspeito. Acha que ela vai relatar o que sobre essa estufa? A quantidade de flores que temos? Nebulous a trouxe para um território neutro. Não há nada para ver aqui.
_ Não podemos confiar inteiramente em Nebulous, ele já falhou antes e está muito a vontade com essa coisinha. Se não formos cuidadosos por ele, a situação pode ficar feia._ Tintus fez uma careta. Margô continuava analidando-os de longe.
_ Você lembra o que o Comandante disse, até segunda ordem, ela é uma convidada. _ Sem esperar a resposta do companheiro, Tintus lhe deu as costas e caminhou até a garota em sua melhor postura diplomática. _ Sinto muito pelo comportamento do meu amigo. Ele é um tanto... explosivo às vezes. Espero que não esteja machucada.
Sem saber o que dizer, Margô balançou a cabeça. Uma luz se acendera em sua mente piscando um alerta. Estranho. Algo estava muito estranho naquele lugar.
Era um reino enorme e um palácio enorme, mas ela ainda não vira ninguém. Além disso, tirando o episódio mais recente, estava sendo muito bem tratada. Por que tanta cortesia com uma desconhecida? O comportamento de Arti era bem mais fácil de entender. Ele parecia ser um rapaz bem simples e direto no fim das contas. Talvez conseguisse tirar algo dele com o tempo.
_ Ótimo! Já que ninguém se machucou, deveríamos tomar água de cheiro em meu recanto. _ Ele ofereceu o braço para Margô que aceitou. Arti os seguiu com olhar desconfiado. _ Aqui é um dos meus locais preferidos. Tirando os jardineiros, fica praticamente deserto. É ótimo para relaxar e curtir.
_ Jardineiros? Eu não vi ninguém por aqui.
_ Eles não vêm hoje.
Ali estava. A breve pausa, o momento de tensão. Um palácio enorme e vazio. Errado, muito errado. Resolveu arriscar uma observação.
_ É um palácio muito grande, deve ter muita gente trabalhando aqui.
_ Realmente.
Tintus não demonstrou qualquer reação, mas, com o canto do olho, ela viu Arti endurecer o maxilar.
Seu acompanhante a guiou até uma trilha e de lá seguiram até uma estrutura de madeira cheia de trepadeiras. Havia vários sofás (presos ao chão) e uma mesinha de centro com um jogo de chá. Apenas uma xícara fora usada.
_ Queiram se sentar. Irei trazer alguns lanches para nós.
Margô tomou o assento mais próximo e Arti,o mais distante. Assim que Tintus saiu de vista, um silêncio desconfortável caiu entre ambos.
Ocorreu a Margô que deveria se desculpar pela cabeçada, mas a verdade é que fora muito bem merecida. Ele pulara sobre ela primeiro, então ele deveria pedir desculpas antes. Contudo, ela tinha a nítida impressão de que ele não o faria. Pôs-se a fitá-lo e ele a encarou de volta. Sem que percebesse, a coisa virara um concurso de encarar. Quando Tintus reapareceu entre as folhas, a tensão no ar era quase palpável.
_ Vejo que estamos nos divertindo_ provocou colocando a bandeja dourada sobre a mesa.
Nenhum dos dois respondeu, mas romperam o contato visual para analisar o que fora trazido.
A comida era bem normal. Gelatina multi colorida e pãezinhos recheados. Nada parecido com o que ela imaginava.
_ Prove_ Tintus lhe ofereceu um pote e ela agradeceu. Quase engasgou ao notar que era um prato salgado. Tinha o mesmo gosto de um ensopado de vegetais, com a textura de uma gelatina. Não era ruim , mas ela devia estar com uma careta, pois os dois rapazes riram. _ Não precisa comer se não gostou.
_ Só é... diferente.
_ É gelatina de sangue de...
Ela não precisou ouvir até o final antes de cuspir tudo de volta no pote. Arti segurou uma risada, enquanto ela se esforçava para não vomitar. Definitivamente, tinha que começar a questionar o que estava comendo.
_ Imagino que gelatinas de sangue não estejam no seu costume_ arriscou Tintus e ela assentiu ainda verde. Arti fazia um grande esforço pata não rir e cuspir a própria comida._ Comporte-se_ repreendeu o amigo. O loiro apenas ergueu as duas mãos em rendição e deu um sorriso zombeteiro a Margô.
_ Desculpe_ murmurou devolvendo o pote a Tintus.
_ Não por isso, querida. Talvez uma massa fermentada lhe agrade mais? _ Ele lhe passou um dos pães.
_ É feito de trigo, certo?
_ Trigo?_ Uma expressão confusa.
_ É um cereal. Cresce do chão assim _ ela fez gestos em vertical com as mãos. _ É meio... meio... bege?
_ Só descreveu boa parte das plantas... _ zombou Arti com um gesto de desdém. Ela abriu a boca para retrucar, mas Tintus já se interpunha entre os dois.
_ Acho que devemos aproveitar a estufa.
...
Margô passou a tarde com os dois rapazes sendo levada para analisar todo tipo de planta bege com grãos que não fosse rasteira. O que incluía um grande número de exemplares. Já estava com os pés doendo, quando concluiu que não havia qualquer trigo ali.
Porém, ela sabia que tudo aquilo era uma desculpa para ocupá-la. Se realmente quisessem sanar sua dúvida, teriam mostrado a planta que deu origem aos pães. Não havia necessidade de passar a tarde analisando todo tipo de mato e erva que podia ser enfiado num espaço limitado, mas ela não reclamou. A companhia de Tintus era reconfortante e a de Arti não era tão ruim. De boca fechada, ele era até passável.
Quando Nebulous veio buscá-la, Margô estava de bom humor. Fora um dia divertido no fim.
_ Parece animada_ comentou o rapaz ao escoltá-la de volta ao quarto. Os olhos azuis a analisavam com interesse.
_ Tintus é uma companhia agradável.
Nebulous sorriu conseguindo ler as entrelinhas, mas provocou:
_ Minha escolha não a agradou? _Ela o encarou. Era melhor ser sincera.
_ Seu amigo é bem diferente de você. Tivemos alguns desentendimentos.
_ Algum em particular?_ Ele sabia que Arti se jogara sobre ela? Não viu Tintus relatar nada. Achou melhor guardar para outra hora.
_ Não.
Foi o fim da conversa.
Assim que chegaram ao quarto, Margô foi recebida por suas criadas que a ajudaram a se banhar e trouxeram sua janta.
A menina evitou pensar no que estava comendo. Não havia nada que pudesse fazer a respeito do que lhe era trazido. Comeria o que tivesse, pelo menos até que algo mudasse, porque era essa a sensação que tinha. A situação naquele palácio parecia muito instável, como se alguma coisa fosse surgir ou desaparecer. A tensão fazia sua pele formigar.
Deixou o prato em um dos móveis e se deitou na cama. As pernas estavam exaustas da caminhada e a cabeça, esgotada de ideias. Ela queria sair para bisbilhotar, mas sabia que era observada. A conversa sigilosa entre Arti e Tintus apenas agravou suas suspeitas.
Fechou os olhos repasando lentamente tudo o que fez desde que acordara. Arti parecia o único capaz de lhe fornecer alguma informação útil sobre aquele lugar.
Seu peito apertava com uma ansiedade que não a visitava há muito tempo. Ela queria sair para correr. Era um velho hábito que criara. A avó sempre dizia que cada um arruma os meios de lidar com os próprios problemas. Ali parada, Margô se sentia uma presa fácil dos pensamentos.
Respirou fundo e esvaziou a mente. Ela precisava se manter calma. Nada estava perdido ainda. Era só uma questão de tempo até que surgisse uma oportunidade.
Silêncio. O quarto tinha um silêncio bom e uma luz cinzenta entrava pela janela. Talvez o ar da noite ajudasse.
Com os músculo protestando, Margô se levantou e andou até as portas duplas de vidro. Conseguia ver a lua dali. Forçou as trancas, uma, duas vezes. Nada. Será que...?
Margô retirou um papel com as anotações sobre os corredores do lugar. Seu estômago gelou. Seu quarto podia ter uma sacada, mas não estava virado para fora. Não havia como aquelas portas de vidro levarem para o exterior. Não estavam trancadas, elas eram decorativas.
A garota passou as mãos pela superfície de vidro. Era como um papel de parede animado. Um papel de parede muito realista. Será que aquela sequer era a paisagem do lado de fora?
Ela voltou a se deitar. Os olhos ardiam e as pálpebras pesavam. Sentia os pensamentos se formando sem conseguir agarrá-los. Era como um pescador sem uma isca. As ideias flutuavam ao seu redor e se debatiam, mordiscavam seu anzol a atiçando, chamando. O sono era igualmente insistente e ela o achou mais convidativo.***
A escuridão dominava a sala e o silêncio era preenchido apenas pelos ruídos dos sistemas de refrigeração das máquinas. A temperatura ali era fria apesar da imensa quantidade de equipamentos ligados ao mesmo tempo. A escuridão só era interrompida pelas luzes de sinalização e pelos dois rostos fantasmagóricos que observavam os dados da projeção.
_ Já dormiu?
_ Sim, Alteza. Os sinais vitais mostram que a unidade Margô está entrando no primeiro estágio de sono.
_ Ótimo. Continuem monitorando tudo que ela faz. Devo ser informada sobre qualquer atividade fora do normal.
_ Está bem. _ Uma pausa. _ Devia avisar que a sacada é uma projeção. Eu achei que ela ia quebrar o equipamento tentando passar.
Um sorriso surgiu no rosto dourado.
_ Isso levaria a outras perguntas que não vou responder. Por hora, vamos confiar no trabalho dos construtores.
_ Sim, Alteza.
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Um lugar seguro
General FictionEra sua primeira vez fora de casa. Trabalho novo, casa nova, cidade nova, mas Margô jamais imaginara entrar em um mundo completamente novo. Ao atravessar um portal por acidente, nossa heroína deixa sua vida pacata de lado para adentrar num universo...