único

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É difícil, né, colocar em palavras as coisas, aquilo que a gente sente. Pra mim é especialmente difícil, porque eu nunca sei muito bem como começar, ou como continuar, ou como terminar. Esses dias a irmã do Hakkai me perguntou quais eram os meus pronomes — e eu lá sei o que são pronomes? Enfim. É difícil, você sabe, eu sei, todo mundo sabe. Comunicação — essa é a palavra — é uma merda. Eu sou uma merda me comunicando, assim como você. De vez em quando ele insiste que eu fale — o Chifuyu, ele que insiste — mas eu nunca sei o que falar, então eu só peço desculpas e espero que ele deixe de lado. Mas ele não deixa.

É só que, caralho, eu não consigo, mesmo. Não consigo falar. Toda vez que eu tento elas fogem de mim, as palavras, e eu tento tanto fazer com que elas saiam de mim, mas elas não querem sair. Chega a ser meio ridículo. Eu engasgo e não consigo falar e aí eu só choro. E ele fica me olhando — o Chifuyu, claro que é o Chifuyu, só ele é imbecil o suficiente pra ter paciência comigo e minha inabilidade de existir como ser humano — e eu sei que eu só tô sendo a porra de um estorvo, mas você não sabe quantas vezes eu tentei afastar ele de mim, e mesmo assim, mesmo assim, ele insiste em ficar. E eu também não consigo explicar pra ele o porquê de eu não conseguir falar, até porque nem eu sei o motivo. Só... não sai. Não funciona. Ficar quieto no meu canto foi sempre o que me garantiu segurança — e a gente sabe, eu e você mais do que ninguém, a merda que deu quando eu tentei sair da minha zona de conforto.

Foi ideia dele que eu escrevesse. Que eu te escrevesse, pra ser mais preciso. Ele me disse que tinha feito isso antes — que na verdade tinha sido ideia da terapeuta dele, e eu nem sabia que ele fazia terapia, e eu me senti um péssimo amigo, e então eu pensei que na verdade nós não éramos amigos e então coisas aconteceram, as mesmas que aconteciam antes, sabe, quando eu não conseguia respirar e você tinha que me segurar e ficar quieto até que eu conseguisse voltar ao normal. Ele disse que fazia bem.

Tem muita coisa aqui dentro, sabe? Muita, muita coisa, tanta coisa que eu nem sei como começar ou em que ordem fazer, na verdade eu nem sei direito o que eu quero dizer porque eu não sei, eu não sei mesmo, o que eu sinto. Não que vá importar se isso ficar confuso, né? Porque você não tá mais aqui. E às vezes, quando eu lembro disso, eu só não consigo me segurar. E eu juro que eu tento, mesmo, porque eu sei como te incomodava e eu sei como você ficava triste e eu vejo no Chifuyu como ele não gosta que eu me machuque mas não dá. É como se a minha pele estivesse pedindo, como se os meus dedos fossem cair se eu não encontrasse um jeito de descarregar as coisas. Eu já não tenho mais doze ou quinze anos — não posso sair por aí comprando brigas a torto e a direito pra me livrar dos meus pensamentos confusos. Então tudo que me resta é voltar aos velhos hábitos.

Eu sinto como se a cada passo que eu desse pra frente, eu fosse forçado a dar dois passos pra trás. O progresso vem — minha pena de dez anos pelo que eu fiz com você — e então vai — tudo aquilo que aconteceu nesses dez anos e que o meu cérebro só se recusa a processar. Eu não lembro. De vez em quando me bate um medo de acabar esquecendo meu próprio nome, ou o do Chifuyu, ou o seu. Especialmente o seu, porque eu não consigo mais falar — não sou digno de falar seu nome. Parece errado, sabe? Parece errado falar sobre você depois de tudo. Parece errado até mesmo escrever seu nome. Porque você não teria feito o que fez se eu não tivesse fodido com tudo pra início de conversa. Você estaria aqui, e o pet shop seria seu, e talvez o Mikey não se perdesse, porque você ficaria ao lado dele. E todo mundo seria tão mais feliz. Acho que eu seria tão mais feliz, sabe, por mais egoísta que isso soe — não que o meu egoísmo importe, ninguém espera nada mais do que isso de mim.

Eu não consigo tirar da minha cabeça que eu que tinha que ter ido no seu lugar, entende? Porque você não merecia, você não merece isso. Você tinha que ter seguido seus sonhos, e tinha que ter continuado como capitão da primeira divisão e como amigo do Mikey, e tinha que ter acabado com o Kisaki da mesma maneira com que você acabou com tantos idiotas antes. Você tinha que ter terminado o Ensino Médio porque ia deixar a sua mãe feliz, e tinha que ter montado o pet shop com o qual você tanto tinha sonhado, e cuidado dos seus gatos e adotado ainda mais gatos, como você me disse que ia fazer. E tinha que ter ficado com o Chifuyu, porque, porra, ele sente tanto a sua falta. Ele nunca me fala isso, ele nunca mostra pra mim, mas eu sei, eu sei o que ele tá sentindo. Dá pra perceber, sabe? Em como ele olha pra janela, e pras fotos antigas, e pra mim também. Dá pra perceber como ele queria que fosse outra pessoa do lado dele — porque era pra ser outra pessoa. Era pra ser você aqui, e não eu.

E é só imbecil, imbecil, imbecil como eu continuo aqui sendo que não tem motivo nenhum pra continuar. E é mais imbecil ainda como eu também não consigo acabar com essa merda de uma vez por todas. Eu devia ter me matado lá atrás, você sabe quando. Quando eu tentei e eu cheguei tão, tão perto, mas você tinha que ter estado lá pra me salvar, né? Você tinha que ter me dito pra tomar vergonha na cara, e me feito prometer que eu não faria isso de novo — e eu prometi, e depois cheguei perto de descumprir a promessa tantas e tantas vezes, mas nunca obtive sucesso. Nem isso eu consigo fazer direito.

E o fato de que eu não consigo lembrar do que aconteceu nesse intervalo de tempo me deixa paranóico. Eu tenho sonhos e eles são reais e desesperadores e quando eu acordo todas as minhas lembranças somem, e o que me resta é ficar olhando pra parede e chorar, porque a única coisa que eu sei fazer, desde sempre, é chorar. Que nem a porra de uma criança. Só que antes você tava aqui, e você me abraçava quando eu precisava, e me dizia que ia ficar tudo bem — mesmo que nós dois soubéssemos que era mentira. E agora eu tô sozinho — por culpa e incompetência minha, como de costume.

Às vezes eu sonho com você, também, e esses são sempre os piores porque são os únicos que eu consigo lembrar. É um looping do seu sangue escorrendo pelas minhas mãos, tão, tão quente que machuca, e as vozes de todos os seus amigos falando cada vez mais alto, e então o Chifuyu começa a gritar e é tanto barulho ao mesmo tempo que eu entro em pânico e não consigo respirar. Já perdi as contas de quantas vezes nos últimos meses eu acordei hiperventilando, os dedos e a boca e o torso formigando tanto que eu sinto necessidade de arrancar minha pele pra me livrar do sentimento.

Não era pra ter sido assim, não era pra ter sido desse jeito. Nada disso, nada do que aconteceu ou do que acontece ou do que vai acontecer. Eu sinto muito, muito, muito, muito. Me desculpa, por favor, me perdoa. Eu sinto tanto. Eu sei que esse não é o tipo de coisa que você ia querer ouvir — mas isso importa? Importa, Baji? É só uma questão de tempo, no fim das contas — uma questão de tempo até eu ir te encontrar.

E aí eu finalmente vou poder te falar tudo pessoalmente.

Não era pra ter sido assimOnde histórias criam vida. Descubra agora