Capítulo Único

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Existem algumas coisas bizarras que o amor e a convivência fazem com você.

Lembro de quando eu morava com meu pai e da sensação angustiante de escutar o ronco dele atravessando as paredes do meu quarto. Lembro de odiar toda a sinfonia que o levava a roncar do jeito que ele roncava; a respiração falhada, aquele barulho agudo da ação de puxar um ar que parecia tão pesado, quase que rarefeito. Mas, toda vez que meu pai acordava e eu comentava com ele sobre os sons que ele produzia, sua expressão mudava; com o rosto avermelhado e portando apenas um sorriso de escárnio, me acusava de estar mentindo sobre todo o barulho. Semanas depois o meu celular ficou cheio de gravações de áudios repletos de ruídos dos roncos; e mesmo assim, depois de mostrar as gravações ao meu pai, ele continuava a negar tudo.

Meu pai morreu há anos, mas lembro que seu constante estado de negação sobre os barulhos fizeram com que eu passasse a duvidar das coisas que ouvia. Você entende o peso disso quando percebe que ouvir é uma ação sem filtros, não dá pra selecionar aquilo que se escuta, que é bem diferente daquilo que você faz quando fala. Comecei então a perceber que diversos outros barulhos me cercavam e que, em sua maioria, eram barulhos baixos e desconexos. Com o tempo entendi que o ato de ouvir é imprudente, quando em excesso, podendo se tornar perigoso de se fazer até em pequenos gestos.

Hoje, já adulto e fora da casa do meu pai, vivendo entre minhas próprias paredes, já depois do amor e da convivência, deito, insone, ao lado de quem me casei, à espera de que algum barulho familiar me coloque para dormir. De súbito, escuto a respiração dela falhando aos poucos, com puxadas de ar mais e mais fortes; os barulhos agudos começam a aparecer, como gritinhos nasais de um ar desesperado para ser engolido e, depois de sentir que o ronco está por vir, eu me deito lateralmente ao seu corpo, deixando uma das minhas orelhas perto o suficiente de seu nariz e boca para não perder nenhum momento desse espetáculo de cacofonia.

Mas, embora o ritmo da caixa torácica dela se mexendo a cada respiração pudesse ser o embalo perfeito para um acalento, o calor, os cabelos que dão chicotadas com o vento, os membros dormentes e o ronco cada vez mais e mais alto me fazem lembrar que a conchinha é uma das piores invenções da humanidade. No começo a conchinha parece uma boa e confortável ideia por que se inicia com um abraço, mas um abraço só é bom justamente por que não dura tanto tempo.

A única alternativa restante é dormir. Sem tempo pro calor, sem tempo para os membros dormentes, sem tempo pra mais nada, apenas durma. Quanto mais rápido se dorme numa conchinha, mais fácil fica de se livrar dela inconscientemente enquanto se está dormindo; simples e fácil, como um crime perfeito, sem explicações para sair dali, sem peso na consciência por desfazer um abraço superestimado em posição de decúbito lateral.

Mas dormir é tão difícil, não é? Dias e dias. O barulho do ventilador não ajuda, nunca ajudou. Estar enrolado é quente e estar sem lençol é frio. A conchinha é superstição. O ronco é patético. O gato do vizinho passa e derruba as plantas da varanda em plena madrugada e você acha que estão invadindo a sua casa. Dormir é para poucos. Dormir bem e despreocupado é para os que têm sorte. Eu nunca tive nem sorte e nem sono e, quando se está sem sono, seu corpo adora brincar com você. A privação de um direito básico e natural de uma boa noite de sono nos transforma em nosso próprio perigo; qualquer barulho nos deixa em alerta, até mesmo o barulho dos nossos dentes rangendo e da nossa saliva descendo apertada pela nossa garganta.

Os nossos sentidos nos traem como se fôssemos a própria ameaça; os olhos enxergam, em toda sombra, indivíduos perigosos. A cabeça cria cenários ridículos de defesa em situações que não vão acontecer. E uma das piores partes é, sem dúvida, o papel das orelhas. As orelhas são os órgãos mais difíceis de se enganar, não há uma posição em que você durma onde seja possível abafá-las totalmente. Se você deitar de bruços, a sua visão consegue ser impedida plenamente; mas os seus ouvidos ficam em completo funcionamento. Caso você se deite de um lado, uma das suas orelhas permanece em pé e vice versa. Então, no fundo, não importa a sua posição, de frente, de lado ou de costas: seus órgãos auditivos estarão lá para te mostrar que você é um bicho que sempre estará em alerta. E o perigo é ainda mais real quando a sua cabeça o cria.

Após inúmeras tentativas, consigo fechar os olhos e dormir; instantaneamente me vejo dentro de um sonho perturbador em que escuto um indivíduo pulando os muros, subindo as escadas e tentando invadir a minha casa; o homem paira seus olhos nas persianas da janela do quarto, por onde me observa através das frestas abertas e iluminadas pela luz da lua e do poste. De imediato, me levanto num impulso sonâmbulo, abro a porta do quarto e caminho em direção à sala, esperando acordar a qualquer momento daquele transe. Então, nesse instante, aquela sensação de estar sendo observado dentro do quarto passa a tomar proporções ainda maiores; ouço mais e mais barulhos de pernas e braços escalando muros, de passos na escada e no telhado. Todos os meus sentidos entram num desespero em comunhão e começo a me sentir invadido por todas as janelas da casa. Todas as frestas possuem par de olhos negros e foscos. Corro e fecho as persianas, uma a uma, na tentativa de expulsar o que quer que sejam as criaturas que estão lá fora.

De repente, os barulhos cessam e toda a casa está banhada pelo silêncio e pela escuridão. Como as luzes estão apagadas, começo a tatear pelas paredes à procura da porta do quarto, mas, estranhamente, não consigo encontrar a porta que antes possuía certeza absoluta que um dia estivera ali. Confuso, sem saber se ainda estou sonhando ou não, tento chamar pela minha esposa, mas as palavras não saem completas; minha garganta falha, seca, como se a escuridão estivesse com as mãos no meu pescoço. Desesperado, começo a bater nas paredes violentamente mas não escuto nenhuma resposta dela, em retorno. Desconsolado, deito ao chão, desabando num patético choro silencioso e, estranhamente, durmo.

Acordo, numa manhã quente e abafada, aliviado por estar dentro do meu quarto. Ao meu lado, minha esposa ainda dorme tranquila e despreocupada. Procuro levantar para beber água, mas, sem querer a desperto de seu sono; ela me pergunta se dormi bem, eu digo que não sei. Confusa, ela se espreguiça e me pede explicações para aquela resposta, então começo a contar todo o sonho que tive, ainda nervoso por tudo que havia me acontecido. Ela escuta atentamente e ao final me abraça quando a digo que a única coisa que consigo sentir é medo. Mas percebo que, para além do medo, um enorme calor toma conta de mim.

Finalmente consigo me levantar para beber água depois de tudo pelo o que passei enquanto dormia. O calor aumentava mais e mais; notei, durante o percurso para a cozinha, que a explicação para essa quentura era de que todas as janelas e persianas da casa estavam fechadas, o que era incomum por que antes estavam abertas. De súbito, senti um estranho calafrio nas costas e, quando retornei ao quarto, perguntei para minha esposa se ela havia fechado as janelas. Não escutei resposta alguma dela sobre as janelas; seus olhos estavam fixos num ponto imaginário da parede do quarto, abertos e foscos.

De repente, os barulhos dos muros sendo escalados retornam e eu a pergunto se ela também os escuta. Estática, ela apenas balança a cabeça, de um lado para o outro, em negação para a minha pergunta; suas expressões estão cada vez mais estranhas. Corro para a porta, tentando abri-lá para sair dali, mas a porta novamente havia sumido do quarto.

Curiosamente os barulhos fora da casa cessam assim como da primeira vez, mas, dessa vez, um outro ruído se inicia no lugar. Uma respiração fraca e densa começa a se tornar presente; o som de um ronco estridente se forma gradativamente enquanto eu ainda tento procurar uma saída. Estranhamente, aquele barulho era familiar até demais. Procuro olhar de novo para minha esposa e, ao encarar suas feições, percebo que não estou olhando mais para ela; o que eu agora via era o rosto do meu pai se fazendo presente em sua face, pálido e acinzentado. Seus olhos pretos e foscos estão abertos e da sua boca um ronco angustiante é emitido. Não pergunto para o meu pai o motivo daquilo tudo estar acontecendo, apenas caio ao chão e peço para que ele pare com todo aquele barulho; nesse momento, olho novamente para o seu rosto e percebo que um sorriso de escárnio começa a tomar conta da sua boca; o sorriso vai ficando cada vez maior até se tornar uma risada histérica e, em seguida, tudo o que ele me diz é para parar de contar mentiras sobre barulhos que não existem. Nesse momento, eu desmaio num breu cercado de cacofonias e durmo o melhor sono da minha vida, rodeado por todos os barulhos que são estranhamente familiares.

As mentiras das ondas sonorasOnde histórias criam vida. Descubra agora