Capítulo único

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Meninos e meninas passavam por mim rindo, alguns me abraçavam, alguns tinham olhares distantes porque no fundo, a escola era o que mais se aproximava do ideal de lar para eles, outros faziam piadas pelas costas. Como diretora a gente se acostuma. O sinal já havia tocado para dispersar os meninos para casa.

Chegou a hora da ronda escolar, como chamávamos. Constantemente tinha algum grupinho que demorava mais para sair. Nem sempre podia acompanhar esse momento por causa das demandas, mas em alguns casos minha presença ajudava a equipe nessa missão. O turno da tarde começaria em cerca de uma hora e a equipe de limpeza precisava arrumar a zona que eles causavam. Além disso, era sempre bom checar os banheiros e cada sala. Alguns ficavam para conversar, outros para algo mais (e era esse algo mais que nos preocupava).

Voltei para minha sala. Alguns pontos ainda careciam da minha atenção. Alguns questionamentos feito por professores insatisfeitos. Eu não podia mudar tudo, mas poderia facilitar certos pontos. Havia acabado de sentar na minha mesa quando ouvi uma movimentação estranha. A secretaria ficava ao lado da minha sala, passei por ela e não vi movimento nenhum fora do normal, só pais fazendo fila para o atendimento. Duas batidas na porta e uma brecha em seguida dando lugar ao rosto de uma das secretarias.

- Pode entrar, dona Sandra.

Ela carregava uma pasta de aluno e seu rosto já enrugado pela idade tinha expressões de preocupação.

- A gente precisa ligar para uma mãe.

Era normal isso acontecer. As escolas públicas mal tinha um telefone fixo. E quando havia era quase inútil, já que a maioria dos pais tinha apenas celular. E por algum motivo, os telefones fixos das escolas eram bloqueados para ligar para celular. Uma das contradições do sistema que já nos deixou em apuros muitas vezes.

- Claro. - Peguei meu telefone pessoal que estava no carregador, e lhe entreguei.

- A senhora pode ligar?

Ela tinha autonomia, mas pela forma que fechou a porta atrás de si era óbvio que havia mais alguma coisa.

-É que tem um pai aqui querendo pegar a filha. Mas há uma medida protetiva. Dissemos que ela não veio, mas ela está la em cima com uma das professoras.

- Ok. Deixe eu ver essa pasta.

Peguei o arquivo da mão dela enquanto buscava pelo numero da mãe. Expliquei o acontecido e encerrei a ligação. Pela janela da minha sala pude ver uma moto estacionada próximo ao portão da escola. Na guarita pouco movimento.

Saí da minha sala e dei a volta no refeitório, olhando de longe pra situação. Os porteiros já estavam dentro da escola, próximo o suficiente para conter o rapaz se houvesse alteração. Ele estava com dois capacetes em mãos. No entanto ele estava sozinho. A intenção era clara. Se eu me aproximasse corria o risco dele me conhecer e ficar ainda mais alterado. Se eu subisse as escadas ele entenderia o que estava acontecendo. Me lembrei quando toda a papelada foi processada. Quando ela chegou com aquele documento com um misto no olhar. Um pouco de esperança e medo. A medida para ele não se aproximar da menina, surgiu pela atitude violenta que ele tinha com a mãe. Mas ao conversar com a pequena Julia, as professoras não notavam nenhuma raiva quando o pai era citado em alguma conversa. A única frase dita era: Não gosto dele porque ele batia em minha mãe. Pelos anos em escola lidando com tantos pais diferentes, eu tinha minhas duvidas sobre aquela situação. Mas a justiça estava do lado dela. O que eu poderia fazer? Não sabia de verdade o que acontecia dentro de quatro paredes. Ele começou a bradar com as meninas da secretaria.

-Eu sou o pai, tenho o direito de ver minha filha.

-Pai, ela não veio hoje. A mãe disse que ela estava doente.

-Isso é mentira! Eu sei que ela veio.

Um dos porteiros tento se aproximar, sendo impedido pelo pai.

-Não encoste não. Eu não estou fazendo nada.

- Mas o senhor precisa se controlar. Ainda tem criança aqui esperando os pais.

Vi que a situação não ia melhorar, e elas não falariam nada sem meu aval. Também tinham medo dele estar armado ou apelar para a violência fisica. Me aproximei como se estivesse chegando naquele momento. Ele estava tão absorto em suas queixas que não percebeu quando sai da minha sala.

- Oi, bom dia. O que foi que houve?

- Ele quer ver a filha, mas ela não veio hoje. - Dona Sandra disse aparentando a maior inocência possível.

Acenei e ela entendeu que deveria continuar o trabalho normalmente, dali pra frente era comigo. Saí da área mais vista e pedi pra ele me acompanhar até um ponto do refeitório. Os porteiros poderiam continuar nos vendo, mas as poucas crianças que restavam não conseguiria. Não tinha a menor chance de convida-lo para minha sala.

- A senhora é a diretora, não é?

Assenti. Ele me explicou tudo, assim como ja tinha feito antes com os demais funcionarios.

-Serei bem franca com o senhor. Há uma medida protetiva e o senhor sabe disso porque já tem mais de um ano. O senhor nos coloca em uma situação complicada vindo aqui e exigindo ver sua filha. Estamos agindo dentro da lei, mesmo que ela tivesse vindo, não poderia vê-la.

A muralha se desfez. A veia de raiva se transformou numa forte ruga.

-Eu não aguento mais. Tem mais de 3 meses que não vejo a minha filha. Essa mulher é louca. Eu nunca fiz mal a Julia. Só foi um relacionamento que não deu certo. Eu amo aquela menina com toda minha vida. Odeio a mãe, mas amo a filha.

Ele estava mais desabafando do que pedindo algo. Aquilo estava longe da minha alçada. Não poderia resolver. E pela minha experiência sabia que não deveria interferir.

Naquele instante a mãe chegou, bradando como leoa.

-Como se atreve aparecer aqui? Esqueceu tudo que fez? Quem bate esquece, não é? Quem apanha não. Você nunca mais vai tocar nela.

As vozes se alteraram. A equipe já havia chamado a polícia, que também acabou de chegar. Não era a cena que eu queria que as crianças vissem, mas em alguns momentos eu esquecia, que o bairro onde eles moravam eles viam bem mais que dois policiais fardados.

- Cada um precisa buscar o seu direito, e não sou eu que vou burlar as leis. Tenho uma escola para tomar conta.

O homem foi forçado a sair do local, lágrimas de ódio e tristeza se misturavam. Mas sei que ele me ouviu. Se ele estivesse certo ia buscar seus direitos como pai e provar sua competência.

O medo ainda pairava entre os funcionários. E se ele voltasse? E se tentasse algo por impulso, como vingança? A mãe ainda tremia quando os policiais voltaram confirmando que ele já tinha ido embora. A filha desceu e nunca soube o que tinha acontecido. Saíram pelo fundo em um carro de um policial à paisana e foram levadas para a casa: em um centro de acolhimento feminino.

Depois de ver que tudo havia voltado pro eixo eu saí para o almoço, antes porém passei meia hora no carro, sendo consumida pela lembrança daqueles olhos do pai. Até onde aquela mãe iria pra se vingar? Ou até onde aquele pai mentiria para ter sua filha? Uma das piores partes do meu trabalho era não acompanhar os alunos pra casa. A escola vai até onde os pais permitem, depois disso a família decide qual rumo a criança vai tomar. A frustração de ver caminhos tão diferentes me frustrava. Não queria brigar contra a família, mas com ela ao meu lado.

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⏰ Última atualização: Aug 14, 2021 ⏰

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