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A senhora estranhou, na última vez que estivemos juntos, a minha excessiva indulgência
pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e
extravagâncias.

Quis responder-lhe imediatamente, tanto é o apreço em que tenho o tato sutil e esquisito da
mulher superior para julgar de uma questão de sentimento. Não o fiz, porque vi sentada no sofá, do
outro lado do salão, sua neta, gentil menina de 16 anos, flor cândida e suave, que mal desabrocha à
sombra materna. Embora não pudesse ouvir-nos, a minha história seria uma profanação na
atmosfera que ela purificava com os perfumes da sua inocência; e-quem sabe ?-talvez por ignora
repercussão o melindre de seu pudor se arrufasse unicamente com os palpites de emoções que iam
acordar em minha alma.

Receei também que a palavra viva, rápida e impressionável não pudesse, como a pena calma
e refletida, perscrutar os mistérios que desejava desvendar-lhe, sem romper alguns fios da tênue
gaza com que a fina educação envolve certas idéias, como envolve a moda em rendas e tecidos
diáfanos os mais sedutores encantos da mulher. Vê-se tudo; mas furta-se aos olhos a indecente
nudez.
Calando-me naquela ocasião, prometi dar-lhe a razão que a senhora exigia; e cumpro o meu
propósito mais cedo do que pensava. Trouxe no desejo de agradar-lhe a inspiração; e achei voltando
a insônia de recordações que despertara a nossa conversa. Escrevi as páginas que lhe envio, as quais
a senhora dará um título e o destino que merecerem. É um perfil de mulher apenas esboçado.

Desculpe, se alguma vez a fizer corar sob os seus cabelos brancos, pura e santa coroa de
uma virtude que eu respeito. O rubor vexa em face de um homem; mas em face do papel, muda e
impassível testemunha, ele deve ser para aquelas que já imolaram à velhice os últimos desejos, uma
como essência de gozos extintos, ou extremo perfume que deixam nos espinhos as desfolhadas
rosas.

De resto, a senhora sabe que não é possível pintar sem que a luz projete claros e escuros. As
sombras do meu quadro se esfumam traços carregados, contrastam debuxando o relevo colorido de
límpidos contornos.

A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi em 1855.

Poucos dias depois da minha chegada, um amigo e companheiro de infância, o Dr. Sá,
levou-me à festa da Glória; uma das poucas festas populares da corte. Conforme o costume, a
grande romaria desfilando pela Rua da Lapa e ao longo do cais, serpejava nas faldas do outeiro e
apinhava-se em torno da poética ermida, cujo âmbito regurgitava com a multidão do povo.

Era ave-maria quando chegamos ao adro; perdida a esperança de romper a mole de gente
que murava cada uma das portas da igreja, nos resignamos a gozar da fresca viração que vinha do
mar, contemplando o delicioso panorama da baia e admirando ou criticando as devotas que também
tinham chegado tarde e pareciam satisfeitas com a exibição de seus adornos.

Enquanto Sá era disputado pelos numerosos amigos e conhecidos, gozava eu da minha
tranqüila e independente obscuridade, sentado comodamente sobre a pequena muralha e resolvido a
estabelecer ali o meu observatório. Para um provinciano recém-chegado à corte, que melhor festa
do que ver passar-lhe pelos olhos, à doce luz da tarde, uma parte da população desta grande cidade,
com os seus vários matizes e infinitas gradações?
Todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o africano puro; todas as posições, desde
as ilustrações da política, da fortuna ou do talento, até o proletário humilde e desconhecido; todas as
profissões, desde o banqueiro até o mendigo; finalmente, todos os tipos grotescos da sociedade
brasileira, desde a arrogante nulidade até a vil lisonja, desfilaram em face de mim, roçando a seda e
a casimira pela baeta ou pelo algodão, misturando os perfumes delicados às impuras exalações, o
fumo aromático do havana as acres baforadas do cigarro de palha.
— É uma festa filosófica essa festa da Glória! Aprendi mais naquela meia hora de
observação do que nos cinco anos que acabava de esperdiçar em Olinda com uma prodigalidade
verdadeiramente brasileira.
A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião, a
alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as
nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe
esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho
e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao
menor sopro, como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce
melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno
na mimosa aparição.

— Já vi esta moça! disse comigo. Mas onde?...

Ela pouco demorou-se na sua graciosa imobilidade e continuou lentamente o passeio
interrompido. Meu companheiro cumprimentou-a com um gesto familiar; eu, com respeitosa
cortesia, que me foi retribuída por uma imperceptível inclinação da fronte.

— Quem é esta senhora? perguntei a Sá.

A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e fatuidade, que
desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das banalidades sociais.

— Ora! Faço mistério disto?

— Não é teu costume decerto.

— Portanto tenho o direito de ser acreditada. As aparências enganam tantas vezes! Não é
verdade? disse voltando-se para mim com um sorriso.

— Não me lembra o que lhe respondi; alguma palavra que nada exprimia, dessas que se
pronunciam às vezes para ter o ar de dizer alguma coisa.

Quanto a Lúcia, fazendo-nos um ligeiro
aceno com o leque, aproveitou uma aberta da multidão e penetrou no interior da igreja, em risco de
ser esmagada pelo povo.

Não preciso dizer-lhe, pois adivinha, que acabava de fazer uma triste figura. Não sou tímido;
ao contrário peco por desembaraçado. Mas nessa ocasião diversas circunstâncias me tiravam do
meu natural. A expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto, ainda mesmo quando os
lábios dessa mulher revelavam a cortesã franca e impudente o contraste inexplicável da palavra e da
fisionomia, junto à vaga reminiscência do meu espírito, me preocupavam sem querer.

Atribuo a isto
ter eu apenas balbuciado algumas palavras durante a conversa, e haver cortejado respeitosamente a
senhora, que apesar de tudo ainda me aparecia nesta mulher, mal a voz lhe expirava nos lábios,
porque, então, o desdém que vertia de sua frase volúbil passava, e o semblante em repouso tomava
uns ares de meiga distinção.

A festa continuou, e fomos acabá-la em uma alegre reunião, onde se dançou e brincou até
duas horas da noite.

Quando apaguei a minha vela ao deitar-me, na dúbia visão que oscila entre o sono e a
vigília, foi que desenhou-se no meu espírito em viva cor a reminiscência que despertara em mim o
encontro de Lúcia.

Lembrei-me então perfeitamente quando e como a vira a primeira vez.
Fora no dia da minha chegada. Jantara com um companheiro de viagem, e ávidos ambos de
conhecer a corte, saímos de braço dado a percorrer a cidade. Íamos, se não me engano, pela Rua das
Mangueiras, quando, voltando-nos, vimos um carro elegante que levavam a trote largo dois fogosos
cavalos. Uma encantadora menina, sentada ao lado de uma senhora idosa, se recostava
preguiçosamente sobre o macio estofo, e deixava pender pela cobertura derreada do carro a mão que
brincava com um leque de penas escarlates.

Havia nessa atitude cheia de abandono muita graça;
mas graça simples, correta e harmoniosa; não desgarro com ares altivos decididos, que afetam
certas mulheres à moda.

No momento em que passava o carro diante de nós, vendo o perfil suave e delicado que
iluminava a aurora de um sorriso raiando apenas no lábio mimoso, e a fronte límpida que à sombra
dos cabelos negros brilhava de viço e juventude, não me pude conter de admiração.

Acabava de desembarcar; durante dez dias de viagem tinha-me saturado da poesia do mar,
que vive de espuma, de nuvens e de estrelas; povoara a solidão profunda do oceano, naquelas
compridas noites veladas ao relento, de sonhos dourados e risonhas esperanças; sentia enfim a sede
da vida em flor que desabrocha aos toques de uma imaginação de vinte anos, sob o céu azul da
corte.

Recebi pois essa primeira impressão com verdadeiro entusiasmo, e a minha voz habituada às
fortes vibrações nas conversas à tolda do vapor, quando zunia pelas enxárcias a fresca viração, minha voz excedeu-se:

— Que linda menina! exclamei para meu companheiro, que também admirava. Como deve
ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso!
Um embaraço imprevisto, causado por duas gôndolas, tinha feito parar o carro.

A moça
ouvia-me; voltou ligeiramente a cabeça para olhar-me, e sorriu. Qual é a mulher bonita que não
sorri a um elogio espontâneo e a um grito ingênuo de admiração' Se não sorri nos lábios, sorri no
coração.

Durante que se desimpedia o caminho, tínhamos parado para melhor admirá-la; e então
ainda mais notei a serenidade de seu olhar que nos procurava com ingênua curiosidade, sem
provocação e sem vaidade.

O carro partiu; porém tão de repente e com tal ímpeto dos cavalos por
algum tempo sofreados, que a moça assustou-se e deixou cair o leque. Apressei-me, e tive o prazer
de o restituir inteiro.
Na ocasião de entregar o leque apertei-lhe a ponta dos dedos presos na lava de pelica. Bem
vê que tive razão assegurando-lhe que não sou tímido. A minha afoiteza a fez corar; agradeceu-me
com um segundo sorriso e uma ligeira inclinação da cabeça; mas o sorriso desta vez foi tão
melancólico, que me fez dizer ao meu companheiro:

— Esta moça não é feliz!

— Não sei; mas o homem a quem ela amar deve ser bem feliz!
Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos, admirar alguma das brilhantes parasitas
que pendem dos ramos das árvores, abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao colher a linda flor,
em vez da suave fragrância que esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe inseto que nela dormiu,
não a atirou com desprezo para longe de si?

É o que se passava em mim quando essas primeiras recordações roçaram a face da Lúcia que eu
encontrara na Glória. Voltei-me no leito para fugir à sua imagem, e dormi.

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⏰ Última atualização: Aug 26, 2021 ⏰

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