Kieran era apenas um bebê quando primeiro se ouviu falar da chegada do novo garoto.
Era o fim de um dia ensolarado; passada uma temporada de tempestades e escassez de provisões, todos sentiam como se novos ares tomassem os corredores do templo aos poucos. Fhafine, uma das amas responsáveis pelas crianças do templo, havia recém retornado da copa para a enfermaria, uma jarra de suco numa mão e frutas na outra, quando ouviu vozes do lado de fora do cômodo. Os soldados do templo estavam perto da sua hora de retorno, pensou, mas as missões de captação eram em grande parte pacíficas; com equipes que já conheciam há décadas os arredores do templo, a rotina de colheita e busca por recursos era um procedimento simples, sem maiores perturbações.
Até que nesse dia os exploradores retornaram, aparentemente aos berros, com uma cesta na carruagem da frente.
Deixando a bandeja numa mesa de cabeceira e secando as mãos, Fhafine se apressou em unir-se à pequena multidão que formava ao redor dos soldados, cabeças curiosas cobrindo pedaços de sua visão. Ao que parecia voltaram ao templo mais do que frutas, lenha e informações, diziam as vozes. Esforçando-se para olhar acima do grupo de soldados, avistou debaixo de panos pesados, magra e coberta de fuligem, uma mão pequena e frágil. Um bebê, percebeu a mulher em choque, provavelmente não mais velho que qualquer outro do grupo, talvez por volta do seu segundo ou terceiro ano de idade. Um bebê, dada sua pele fortemente bonzeada e a ausência de feições angulares, humano.
Não demorou até que a palavra se espalhasse: "há uma criança humana no templo!". Enquanto metade dos cultistas se apressava em abrir espaço para a carruagem ou buscar água, outra se afastava o máximo possível, olhares ainda curiosos grudados ao cesto de madeira, a uma distância cuidadosa de quem tem medo do que vê. Antes que qualquer outro pudesse fazer algo, Fhafine cortou caminho através do mar de pessoas e alcançou o recém chegado bebê, levantando-o em seus braços e buscando qualquer machucado visível. O garoto tinha bochechas redondas e suas roupas aparentemente foram queimadas até as cinzas; sua respiração era estável mesmo para uma criança tão jovem e no seu pulso esquerdo, a mulher notou, jazia uma cicatriz não muito antiga. Foi enquanto acariciava a mão do pequeno, intrigada pelo símbolo ali marcado, que Fhafine se viu rodeada por dois dos clérigos de cargo mais alto no templo. Um acontecimento desses claramente não passaria despercebido aos olhos de Elyeras, pensou. Aninhando a criança em seu seio e entendendo seu chamado, Fhafine seguiu silenciosa os homens pelo corredor mais a Oeste, longe da praça principal.
...
Os aposentos de Elyeras sempre foram meticulosamente organizados mesmo que repletos de mapa, livros e itens. Ao lado das cortinas pesadas, sobre uma mesa de mogno, uma pequena pilha de papéis se espalhava completamente preenchida por anotações e rascunhos de rotas e locais variados. A pena, com a qual preenchia memorandos e cartas frequentemente, agora parecia jogada ao canto, sua ponta manchando uma das folhas, e Elyeras aparentemente esfregava a tinta também em sua mão enquanto encarava a grande janela direcionada às montanhas fora do templo.
Fhafine foi deixada sozinha no quarto e ouviu as portas se fecharem atrás de si. Enquanto ajeitava a criança em seu colo e se perguntava como iniciar uma conversa tão importante, seus pensamentos foram interrompidos pela voz do meio-elfo em sua frente.
"Fico feliz que tenha sido você a primeira pessoa a pegar nosso convidado. Não sei o que teria acontecido fossem um daqueles loucos da ferraria." - Elyeras virou-se só o suficiente para que a mulher pudesse ver seu sorriso discreto, mas não parou, porém, de tentar remover a mancha preta em seu dedo indicador.
"Sim, senhor. É meu dever zelar por todas as crianças do templo. Fui logo assim que ouvi a comoção."
"Até uma criança humana?"
Silêncio.
Fora da vivência do culto poderia ser mais difícil entender o motivo por trás de tamanha preocupação mas, estando envolvida nos afazeres do grupo desde seu nascimento, Fhafine entendia perfeitamente o que aquela pergunta implicava. "Os humanos", mais especificamente aqueles que viviam em Vallarona, não muito longe dali, sabiam o que ocorria dentro dos portões do templo e vinham há anos buscando impedi-los de suceder em sua missão. Nada garantia, também, que não buscariam essa criança que agora pesava em seu colo, e que não entenderiam que a mesma foi sequestrada, que será morta, que sofrerá nas mão dos cultistas. Fhafine engoliu seco, por medo: dos humanos, daquela criança e do destino que teria, dentro ou fora dali.
"Sei o que passa na sua cabeça agora." - Elyeras cessou de esfregar as mãos e virou-se de frente para a mulher, pegando uma das folhas na sua mesa - "O relatório da missão mais recente informa que esse..." -o homem pausa para ler o papel- "...menino foi encontrado sobre as ruínas de uma construção que acreditamos ser o orfanato de Aravila. Não havia ninguém por perto e a construção aparentemente queimou até as cinzas, provavelmente antes das tempestades."
Fhafine deu um passo pra trás, instintivamente olhando o menino em seu colo. "Como ele..."
"Em seu corpo"- O homem interrompeu- "Deveria haver alguma indicação como um desenho, uma queimadura ou outra cicatriz."
A mulher imediatamente lembra-se do desenho no pulso do garoto e assente, chegando alguns passos mais perto como que para mostrar a Elyeras do que falava. O meio-elfo encara a criança, dá uma única risada e continua.
"Temos evidência o bastante para entender que esse pequeno humano queimou os arredores do orfanato e, provavelmente, aqueles em que lá residiam." -Há uma pausa, como quem espera o outro processar a informação- "E nós imaginamos que, sendo esse o caso, esse menino poderia ser muito útil para nossa organização."
"Útil?" Com o máximo de eloquência que conseguiu evocar no momento, a ama questiona incrédula. Como uma criança, humana, potencialmente capaz de queimar construções inteiras até o pó, seria útil?
"Segundo nossos exploradores, não é do conhecimento de ninguém que achamos esse garoto, visto que ele parecia estar há dias sozinho e não restou outro sobrevivente. Nós, que estamos sendo perseguidos por anos a fio e que estamos sendo mais fortemente cercados a cada dia que passa, achamos uma criança que ninguém sabe que existe."
As peças lentamente encaixavam-se na mente da mulher, mesmo que muitas perguntas ainda restassem.
"Se me permite, senhor..." -Fhafine pausa, engole seco, prevê a resposta que receberá- "Por que o senhor está me contando isso?"
O meio-elfo deposita o papel que segurava em uma gaveta ao lado de sua mesa, e se apoia com as duas mãos na mesma antes de continuar.
"Porque você cuidará pessoalmente desse menino e desse menino somente." -Elyeras sorri com todos os dentes, sua expressão pacífica- "E garantirá que ninguém fora daqui sabe que ele existe."
Antes que a mulher pudesse pensar em qualquer resposta ou compreender sequer metade de tamanha responsabilidade que havia recebido, uma voz, baixa e tímida, vem da porta do aposento.
"Pai?"
Kieran deveria ser dois, talvez três anos mais velho que o bebê que Fhafine carregava. Seus cabelos brancos e olhos azuis não permitiam duvidar que o menino era filho do líder do culto, mas seus cuidados diários eram compartilhados aos de todas as outras crianças que ali residiam. Parado na porta, um olhar curioso pra dentro do quarto e já em suas vestes noturnas, ela esperava uma resposta.
"Creio que já acabamos nossa conversa por hoje, Fhafine." -Ao responder, Elyeras se referiu, porém, à mulher.- "Por favor, dê um banho em Mathyas e garanta que ele está alimentado antes de dormir"
Novamente concordando com a cabeça e decidindo lidar com todos os pensamentos que se passavam por sua mente em outra hora, Fhafine abraçou a criança em seu colo, notando que o mesmo agora se mexia, e virou-se para sair do cômodo, desejando boa noite ao meio-elfo e seu filho ainda na porta.
Na ocasião Kieran era ainda jovem demais para se lembrar de detalhes, tendo começado a falar e andar há não mais que dois anos e ainda precisando buscar os aposentos de seu pai quando tinha pesadelos. Quando sua ama se retirou pelo corredor com outra criança em mãos, porém, o meio-elfo viu de relance seus olhos laranja como fogo, levemente abertos, e nunca mais retirou aquela imagem de sua mente.
"Mathyas..." -Ele murmurou enquanto seu pai já o pegava no colo para entrar no cômodo.