Muito do que se oferecia no mundo exterior chegava às crianças do templo através de histórias. Lugares que nunca visitaram, comidas que nunca experimentaram e criaturas que pareciam ser somente imaginação adornavam os livros de fantasia que Kieran carregava orgulhoso debaixo do braço desde que aprendera a ler; Assim como outras crianças de sua idade, o menino sonhava com o dia em que se tornaria um cavalheiro sobre um grande cavalo ou um mago terrivelmente poderoso, quem sabe ainda o herói de alguma história?
Distraído com seus devaneios, observando as folhas que já soltavam das cerejeiras do pátio, Kieran percebeu que à sua frente frente cabelos ruivos corriam de um lado a outro, um carro de corda chacoalhando sobre as pedras do chão e competindo com o som de risadas. O meio-elfo se aproximou bastante do jovem ainda recém chegado nos últimos três anos, no inicio seguindo o conselho de seu pai de fazê-lo companhia, então realmente apreciando sua amizade, e agora andando sempre lado a lado; A princípio Mathyas estava sob os cuidados de Fhafine por ser muito jovem e estar tanto desnutrido quanto fraco, mas gradualmente foi-se criando uma relação de confiança entre os dois meninos que, além de situações delicadas, compartilhavam inúmeros interesses.
Kieran lia toda noite para Mathyas, e Mathyas sempre o ajudava a subir em árvores e pular muros. É verdade que o menino ruivo agora crescia e chegava quase à altura do outro, mesmo com um par de anos de diferença entre si. Não que Kieran se importasse. Ele cresceria, eventualmente, e estava tudo ok. E foi enquanto pensava sobre a própria altura -o assunto mais sério que poderia assombrar uma criança de 7 anos- que uma voz familiar o chamou.
"Kieran! Kieraaaan!" - Mathyas havia há muito esquecido seu brinquedo e corria para impulsionar um salto sobre o banco de pedra onde o meio-elfo se encontrava - "O senhor Elyeras disse que você ganhou um livro novo!"
"Ganhei! Esse tem desenhos coloridos" - disse enquanto abria uma das páginas centrais, passando os dedos pela folha - "Você quer ouvir?"
"Sim!" - E o humano sorriu um dos sorrisos largos de sempre, um de seus dentes faltando na frente, suas sardas incontáveis refletindo a luz - "Você pode ler agora?"
Kieran achava cada vez mais difícil negar qualquer coisa ao seu mais próximo -e talvez único- amigo e começou então a, pouco a pouco, destrinchar os pequenos parágrafos nas páginas. As imagens ainda serviam de guia para auxiliá-lo e, mesmo que em algum momento ele se desvencilhasse completamente da história, o menino sabia que Mathyas não notaria e sairia contente espalhando sua invenção para todos. Ainda assim, o meio-elfo se esforçava para criar sempre narrativas convincentes e interessantes, que fizessem os olhos âmbar do humano reluzirem. Nessas horas pensava, inúmeras vezes, que gostaria de seguir causando sorrisos com suas palavras.
Já era tarde quando os dois meninos foram chamados a seus aposentos por Elinwe, uma das amas do templo. Com Kieran já adormecido sobre o ombro de Mathyas, ambos foram gentilmente carregados até suas camas sem desconfiar de que sequer dormiram ali mesmo, no pátio.
...
Na manhã seguinte o humano acordou e lembrou-se imediatamente das cerejas em seu bolso no dia anterior, agora parcialmente destruídas. Distraído com a história de ogros guerreiros e dragões elementais, o menino não teve a oportunidade de entregar as frutas a Kieran, que hoje ainda dormia, e decidiu por deixá-las ao lado de sua cama. Isso serviria, pensou, porque ele saberia quem as deixou lá.
Mal sabia o jovem que, daquele simples ato, surgiria um hábito inquebrável. Foi quando trocou presentes por três noites seguidas com o meio-elfo que o menino passou a pensar melhor no que deixaria de recordação, e a considerar aquilo já parte de sua rotina.
Eram dias simples quando os meninos podiam brincar sem maiores preocupações e todos os problemas do mundo eram apenas fruto de suas imaginações.