Rock'n Rose

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Rose Mistral olhou para o interior do bar pela porta de vidro. Lá dentro, banda tocando, bom público. Um jurássico templo de roqueiros. Aqui fora, o frio da noite. Que vinha a calhar para disfarçar a pele friade uma vampira faminta.
     Uma rajada de vento ergueu seus cabelos. É sempre assim em noites de sexta-feira. Barulho e gente. Carros parados em congestionamentos. Crianças que perambulam no escuro como animaizinhos assustados, os corpos entupidos de porcarias que cheiram, bebem e injetam. Uma delas, uma menina, puxou a manga da jaqueta de Rose com a mãozinha :
     - Tia, compra um chiclete.
     Uma vampira mascando chiclete? A goma grudando nos caninos, aquela meleca na hora de dar mordida? Nem pensar. Só se viesse embrulhado num pescocinho macio. Rose riu por dentro. Por fora, continuava com ar indiferente, como todas as garotas humanas que circulavam por ali, mariposas inexpressivas esvoaçando nas noites de sexta-feira.
     Mas o olhar da vampira a denunciava. Olhos vermelhos fitavam a criança, que mastigava um chiclete. Podia ouvir com nitidez o nhac-nhac da goma entre os dentinhos. Tão pequena. Devia ter uns dez anos, mas tinha cara de sete. Podia mascá-la, ela grudava como chiclete.
     - Ah, tia, compra! Por favor!
     - Não gosto desse troço, guria.
     - Então me dá um trocado.
     - Ah, bom, então tá. Toma.
     Olhinhos de felicidade. E de cobiça, ao ver que Rose lhe estendia uma nota em vez de moedas.
     - Valeu, tia!
     Rose não deixou a menina pehar o dinheiro.
     - Valeu nada, não ganho um beijinho?
     A menina franziu a testa, desconfiada. Esta mulher não tonha nojo dela, como as outras. Ou queria só zoar? Hum... Levou o dedo a boca e esticou o chiclete, espalhando no ar o cheiro doce e artificial. Depois o colocou de novo na boquinha molhada. O dinheiro na mão da desconhecida falou mais alto. Aproximou-se. Ficou na ponta dos pés para alcançar o rosto gelado. Viu o vento enguer os cabelos negros e brilhantes da moça. Sentiu o sabor doce do chiclete parado na língua. Os lábios vermelhos roçando no seu pescoço intocado. O som do próprio coração batendo, batendo... E o silêncio no resto do mundo.

     De repente, acabou-se. As buzinas estridentes no trânsito parado soaram de novo. A menina olhou ao redor, procurando a moça. Ela já entrara no bar, podia vê-la pelo vidro. Sentiu uma coceirinha no pescoço. Pulga ou carrapato. Esticou a nota e admirou-a. Puxa vida, cinquenta reais! Aquela mulher tava doidona. Ou era muito rica. Deveria tê-la segurado mais um pouco, quem sabe soltava mais grana.
     O "sócio" acenou na esquina. Queria saber se valia a pena assaltar a mulher na saída. Podia dizer a ele que era uma boa, que a moça era cheia de grana, mas não quis. Gostava dela. Fez um sinal com polegar para baixo. Nada feito.
     Coçou de novo o pescoço e foi-se, correndo, para a porta do próximo boteco.
     Rose sentou-se ao balcão. No canto, escondida, para observar melhor. No palquinho, apertavam-se quatro tritões com pinta de lenhadores canadenses. Tocavam covers de rock dos anos 90. Naquele instante, estavam destrindo com louvor Pain Lies on The Riverside. Certo de estarem abafado, o vicalista já exterminara de forma implacável o Man in The Box, do Alice in Chains. Predadores de música. Rose sorriu. Colegas exterminadores.
     Por falar nisso, era hora de caçar. A mordiscada da menina dos chicletes não havia dado nem pro cheiro. Em outros tempos teria sugado a criança até a última gota, mas a poularia. Sabia-se lá por que, estava ficando boazinha demais. Emotiva. Ok, era melhor esquecer a criança e se concentrar no jantar.
     Varreu o cenário com o olhar. Na frente do palco, uma garota. Cabelos curtinhos tingidos de loiro, os olhos maquiados em excesso, a pele fresca, o corpo acima do peso. Tattoo de borboleta na nuca, piercing na narina esquerda. Babava pelo baterista, um Hell's Angel tupiniquim com os braços cobertos de tattoos, um sujeito fortão que castigava a batera com truculência. Há quem goste, claro. Como essa loirinha. Conhecia o tipo, namoradinha submissa atrás do seu macho roqueiro. Impotava? Nem um pouco. Para Rose, era apenas a promessa de um lanchinho apetitoso.
     Mas queria agir logo, não estava afim de ouvir aqueles dinossauros desafinados por muito tempo. Como se atendesse ao seu pedido, a moça se levantou e veio em sua direção. Ia ao banheiro.
     Rose ergueu-se e chegou à porta do toalete segundo antes da garota, que soltou um bufar de irritaçao por ter perdido a vez. Parecia apertada, com certeza tinha se segurado ao máximo porque não queria se afastar do seu homem. Além de tudo, o banheiro estava ocupado. Esperaram. Rose observava cada milímetro do corpo arredondado e macio da garota.
    - Você conhece o pessoal da banda? - pergunto.
     - Claro! O vocal é meu primo. E fiquei sabendo... - Ela estufou o peito antes de dizer, desafiadora. - O batera é meu noivo.
     Portanto, fique longe dele, completava em pensamento.
     - Não esquenta. - Rose inclinou-se e disse no seu ouvido. - Ele não me interessa. Eu gostei de você.
     A loira abriu a boca para responder. A porta do banheirose abriu, interrompendo-a. Uma motoqueira encouraçada saiu, e foi-se, depois de lançar uma olhada da cabeça aos pés, primeiro em Rose, depois na garota. Calma, leoa, pensou Rose. Eu te experimento amanhã.
     - Pode ir na frente - disse para a novinha do batera, apontando para a porta do toalete. - Te espero lá fora.
     A loira obedeceu, aliviada. Engraçado, não conseguia mais se lembrar do que a moça de jaqueta preta lhe dissera - algo que a havia pertubado. Logo se esqueceu da moça também. Concentrou-se em fazer xixi sem encostar na privada encardida. Lavou as mãos e esforçou-se para enxergaro seu reflexo no espelho opaco. Droga, droga. Retocou o batom depressa e saiu do banheiro. Estava tão dispersa! A música do Breno soava tão longe... Breno era o seu noivo. Tinha que voltar logo, ou aquelas galinhas magricelas, que cacarejavam em volta do palco, podiam avançar no seu homem. Mas, antes, precisava fazer algo. Tinha que ir lá fora. Só não lembrava por quê.

Flores MortaisOnde histórias criam vida. Descubra agora