Danse Macabre

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     Senhorita Íria olhou com aprovação para a lua cheia eaplendorada noite de verão. Passear à noite pelo seu belo jardim era tão agradável! Já estava mesmo na hora do clima se firmar, estava entediada com a sucessão de chuvas que entristeciam a estação e produziam uma umidade incômoda.
     De dentro da mansão, vieram os acordes do piano, numa interpretação vigorosa e apaixonada. Ora, não era um grande previlégio ouvir um gênio como senhor Liszt tocando no salão da sua própria casa? Sim, Litszt em pessoa, o fenômeno que abalara a corte com o inacreditável virtuosismo de seus dedos hábeis! Um pianista estupendo, sem dúvida, mas como compositor... Bem, não era tanto do agrado das jovens damas, quanto aquele polonês, senhor Chopin, que criava peças de admirável delicadeza e poesia. Senhorita Íris nunca externava tais opiniões, claro, para não ferir a sensibilidade tão acentuada desses grandes artistas. Limitava-se sempre a aplaudir com o entusiasmo próprio de uma anfitriã impecável.
     Notou que Horácio, seu criado mais antigo, deslizava entre os convidados com a costumeira eficiência. Mas ele estava ficando velho. Logo teria que aposentá-lo, e seria difícil encontrar alguém com a mesma competência. Oh, céus, problemas nascem a todo tempo, de todos os lugares. Era tão difícil manter a serenidade! Por enquanto, tudo parecia ir bem. Na mansão, os serviçais desempenhavam suas funções com a perfeição de um relógio suíço, cada coisa em seu tempo, em seu lugar.
     - Íris, querida!
     Um farfalhar de sais precedeu a entrada sempre vistosa de Mercedes. O seu perfume encheu o jardim com um sabor doce e sensual. Embora a amasse profundamente, senhorita Íris irritava-se às vezes com a falta de discrição da irmã mais nova.
     - Mas que rosto sério! No que pensava, Íris?
     - Mercedes, querida, estou apenas me deleitando com a música maravilhosa de senhor Liszt. Agora, silêncio... Apreciamos o gran finale da rapsódia.
     Senhorita Mercedes obedeceu por alguns segundos à recomendação, mas logo recomeçou a falar.
     - Íris, preciso...
     - Por favor, Mercedes.
     - Mas...
     - Shhhh...
     - Íris, estou apaixonada!
     A bela garota conseguira, por fim, captar a atenção da irmã.
     - Mas... querida, o que é isso? Como pode falar tal coisa cono se fosse...
     - Uma coisa natural? Sim, sim, é a coisa mais natural do mundo. Eu amo Theo!
     - Theo? Mas quem é Theo? O cavalheiro não tem um sobrenome?
     - Claro que tem Íris. Você quando quer é tão desagradável!
     - Desculpe-me, querida, mas não posso deixar de pensar o quanto todos vão se decepcionar. Você sabe que minha vontade é que se desposasse o capitão Russo.
     Mercedes fez uma careta de reprovação.
     - Capitão Russo, aquele bobalhão!
     - Uma moça de boa família.
     - Não gosto dele, Íris.
     - E gosta desse... Theo. Afinal, quem é ele?
     -...
     - Então?
     - Não vou dizer, Íris, você também está contra mim.
     - Querida!
     - Não vou dizer mais nada, não insista.
     Uma salva de palmas coroou o final do conserto. Os convidados começaram a se dispensar. Casais passeavam pelas alamedas do jardim. Grupos de cavalheiros acrecavam-se das mesas de jogos. Senhorita Mercedes sumira pelo corredor, zangada. Sua irmã suspirou, entristecida com o rumo que as coisas haviam tomando. Um vulto acompanhou-a, enquanto voltava para o salão.
     - Irritada com algo, senhorita Íris?
     - Ah... Meu bom Horácio, nada com que tenho que se ocupar.
     - Ao contrário, senhorita, creio que o assunto merece toda a minha atenção.
     - Entendo a sua preocupação com Mercedes, a quem cuidou desde pequena, Horácio. Mas devo ordenar que se mantenha fora dessa questão.
     - Sim, senhorita Íris.
     A dama olhou, pesarosa, o velho criado se afastar. Odiava conflitos de qualquer espécie, mas às vezes era preciso ter pulso firme.

     - Alô? Theo?
     - Isso! Quem é?
     - Sou Íris, irmã de mercedes. Ela me passou o seu celular.
     - Ah... Tudo bem?
     - Estou na frente do seu apartamento. Preciso muito conversar com você. Posso subir um minutinho?
     - A esta hora? Mercedes está com você?
     - Ah, estou sozinha... Se for encomodar, volto depois. É que eu preciso falar uma coisa muito importante... Mas tudo bem, pode deixar!
     - Não, desculpe. Pode subir!
     - Posso subir mesmo? Tem certeza?
     - Claro, Íris, desculpe meu jeito. Pode vir.
     Íris bateu de leve na porta do vidro do terraço.
     - Oi, Theo, abra a porta.
     - Você é a Íris? Mas como...
     Ela sorriu ao entrar na sala de Theo.
     - Como subi até aqui? Escalei a parede, como fazem os vampiros.
     - Você está brincan...
     Íris segurou suavemente o rapaz pelo pescoço. "Não fale", ordenou-lhe. Olhou ao redor, avaliando o apartamento, notando os equipamentos modernos espalhados pela sala. Móveis ousados, coloridos. Roupas de grife.
     Os cenários mudavam, mas algumas coisas sempre continuariam iguais. Mais uma vez, tinha um humano nas garras. Mais uma vez, executava a dança da morte com os mesmos passos. Mas era a primeira vez que fazia com um namorado de Mercedes. Que era um rapaz bonito, atraente. Claro, não esperaria menos da irmã. Colocou-o no sofá e sentou-se sobre o seu colo. Acariciando por alguns instantes os cabelos espetados do rosto jovem. Os lábios eram carnudo. Que sabor teria o ssu beijo? Provou-o, arrancando um suspiro do garoto. Era doce.
     Por ser o mortal escolhido por Mercedes, foi mais cuidadosa do que de costume. Primeiro, apertou a gargante macia até o rapaz desfalecer em seus braços. Depois, deu a mordida gentil, indolor. Os caninos perfuraram a pele firme do pescoço. O sangue fresco espirrou com abundância. E o festim começou.

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