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30 de dezembro de 2013

Virgínia Beach, Virgínia – Estados Unidos

Cam já não sabe de mais nada. Toda a certeza que fizera com que ele se movesse andar por andar, a pressa crescente, somada ao cansaço, fazendo com que fosse mais rápido pelas escadas, sumiu de um modo que ele nem mesmo se lembra do que um dia existiu ou lhe pertenceu. Ele esqueceu de tudo e esqueceu de tal modo que seu próprio nome foi reduzido a uma simplificação de três letras. Talvez haja mais depois disso, talvez não. E, se houver ou não, não importa. É insignificante, um pequeno detalhe que, na soma, não tem impacto — e todo o resto também parece se resumir a isso.

Só há uma questão que importa agora — e, exceto por isso, exceto por uma questão desdobrada disso, tudo é um excesso desnecessário. Mesmo com os metros que criam o espaço entre eles, mesmo com todo o esquecimento que deveria tornar a compreensão um processo difícil e confuso, Cam reconhece que a cabeça apoiada no ombro de George é a de Erin. Reconhece pelo cabelo. Não importa que o prendedor verde tenha sido comprado em uma liquidação e que dezenas de outras mulheres tenham um similar, apenas Erin prende os fios daquela forma e Cam, que já não sabe de muito, que já não sabe de mais nada, tem essa certeza porque, por inúmeras vezes, manhã após, manhã, dizendo que tem muito para fazer, vestindo as próprias roupas, correndo para chamar as garotas, ele a viu prender os cabelos daquele modo. É o corpo dela, parecendo sobrecarregado, cansado, o que, naquele cenário, é ruim, que está encaixado entre os braços de George.

É Erin.

A percepção faz mais do que obstruir as lembranças de Cam, danificar suas memórias. Em um simples movimento de pálpebras, porque ele não precisa de muito mais para assimilar a cena, todo o seu Universo é reordenado de forma brusca. Dessa vez, também é angustiante. Não é a primeira vez que ele sofre um abalo tão grande para que seu cosmos passa por um processo instantâneo de reorganização. Já sentiu isso em ocasiões felizes — como o momento em que pôde, pela primeira vez, pegar cada uma das filhas nos braços — e também em momentos cuja derrota e desilusão eram os sentimentos tocantes. Algumas dessas situações, caso ele ainda fosse capaz de lembrar, poderiam ter lhe dado um mínimo, raso, frágil preparo para o que sente agora. Nada poderia chegar aos pés, é claro, porque nunca, na história dos abalos, na história dos impactos, na história dos choques, algo foi tão intenso, imediato e profundo ao ponto de fazer Cam pensar que seu nome é só Cam — sem complemento, sem nome do meio, sem sobrenome e quase que sem história.

Há uma razão lógica para isso. Antes, os abalos ocorriam em elementos que compunham o mundo dele; uma estrela era realinhada, outra aparecia, o mar passava a se mover diferente porque a lua foi expandida no céu. O que há agora não mexe em elementos secundários. O mundo, o que dá forma ao núcleo, a gravidade que faz que ele possa estar seguro, preso ao chão, é composto de três coisas: Erin, Marianne e Olivia. É uma composição tão natural, tão elementar, tão orgânica que a simples ideia de fazer qualquer alteração ou mudança naquilo é uma ofensa, uma blasfêmia, um pecado. É tão absurdo que tais cenários sempre demandaram uma imaginação alta, uma criatividade exacerbada e Cam sempre tendeu ao ceticismo, a firmeza de pés no chão — porque a gravidade no seu mundo era forte e o mantinha fixo em um lugar bom — de modo que nunca foi capaz de acreditar na plausividade ou na possibilidade real de um momento como aquele.

No entanto, ali está. Está vivendo aquilo e não sabe como viver porque, sem respostas, sem o quadro geral, Cam consegue sentir o terremoto, o abalo sísmico vindo com tanta profundidade que a crosta é rachada — e Cam se enche de medo porque ele não sabe o quão profundo essa rachadora possa chegar. Talvez, durante o dia de hoje, depois de ter feito funerais para estrelas e celebrado o movimento das marés, Cam presencie algo que nunca foi visto e que, pelo bem da sanidade humana, não deve ser. Talvez hoje, o planetinha colorido e risonho de Cam — que sempre pareceu tão cheio, tão significante, tão perfeito — quebre.

O silêncio das águasOnde histórias criam vida. Descubra agora