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Aviso: o capítulo a seguir relata um acontecimento fictício. A narrativa aqui presente apenas usa de fatos reais para criar um episódio condizente com a história, inspirada no atentado ocorrido em Boston, em 2013, e nos ataques ocorrido em Paris, em 2015. 

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30 de dezembro de 2013

Virgínia Beach, Virgínia – Estados Unidos


George não achou que teria aquilo novamente. Não achou que voltaria a sentir sua mente imersa em gordura quente, seu cérebro se derretendo pela dor do impacto enquanto a destruição dos neurônios faz com que se sinta perdido e incapaz de compreender o que houve. Suas pálpebras se fecham e o modo como se pressionam cria algo diferente. Não é bom — porque não há como ser bom — mas, no mínimo, não é pior. Abre e sente o sangue escorrendo de um corte na lateral da cabeça. Mistura-se a areia seca sobre a qual o corpo dele tombou. As botas de Jack se movem a uma curta distância. Ninguém sabe exatamente como ou por qual razão, mas foi Jack a se levantar primeiro e agir como se não tivesse sido atingido. E Jack está gritando, está dizendo algo que é importante e é urgente, só que George não entende. Ele não consegue entender porque, em seus ouvidos, só há uma estática angustiante e dolorosa, eco mudo, como uma onda que pessoas, pessoas normais, pessoas inteiras, não escutam. E o sol sob sua cabeça ferve o óleo; o cheiro da gordura fervente sobe e George quer vomitar ali mesmo. Acha que pode fazer porque, tudo bem, talvez ele nem mesmo volte para casa.

Pisca. Aperta bem as pálpebras e, quando o faz, tem a impressão de os barulhos a sua volta ganham uma forma maior, como se pudessem ser compreendidos. É como mergulhar e ter o silêncio das águas como única companhia, a ambiguidade calma e aterrorizante cercando sem ter uma forma certa, para erguer a cabeça, pouco a pouco, todo o som do mundo voltando conforme os ouvidos chegam a superfície. Os ouvidos de George, que receberam, faz cerca de um mês, a confirmação de recuperação completa, conseguem identificar que não, não é a voz de Jack. E nem de Aaron, Bonny, Ernesto ou Nicholas. Não, não. É um timbre mais doce, suave que, munido de irritação, faz George pensar e sentir casa. Faz sentir segurança.

É Bev. É Bev quem o está segurando pelo tecido da blusa — aquilo é o colete a prova de balas ou é só o casaco xadrez? É Bev quem está terminando de içar George para cima, tirando o sol e substituindo por uma iluminação branca, mais suave e defeituosa. É Bev quem, movendo os lábios, está fazendo com que George entenda aquilo sob seu corpo é rígido e frio, diferente de areia, industrializado demais para ser natural. É tudo Bev — sempre é.

Com dificuldade, George ergue as pálpebras. Não há areia, não há sol. Não há filete de sangue escorrendo do canal auditivo. Não há dor no tímpano. Apesar disso, sua cabeça reclama, pede a escuridão das pálpebras fechadas; a parte inteira dos neurônios afirma que chega, aquilo já é mais que o bastante e que o melhor é encerrar uma história tão idiota nesse ponto. Não há necessidade de virar a página — o que está escrito lá pode ser muito pior do que aquilo lido até agora.

George pisca. Faz isso rápido, para não ceder a tentação de manter os olhos fechados. Só o faz porque sabe que isso ajuda. Todo o entorno está desordenado e ele precisa de um ponto de partida. Abre e fecha a boca, como se estivesse igualando a pressão, a incompreensão interna com o caos externo de modo a chegar em algum tipo de coerência. Joga o corpo para o lado, deitando-se com as costas contra o chão. O ombro direito, que lhe deu apoio e aguentou o baque doí como se tivesse sido deslocado, o impacto afastando ossos. George, segurando o resmungo de dor, move-o. Diagnóstica por si só que, além da dor, além da sensação desconfortável. Não há nada. Tanto quanto pode, está inteiro.

O silêncio das águasOnde histórias criam vida. Descubra agora