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— Lucius, querido, é hora de dormir.
⠀"É hora de dormir? Tão cedo...", foi o que Lucius pensou, mas já tardava, coisa que ele viu com clareza quando pôde enxergar a lua em seu ponto mais alto no céu escuro através das venezianas de sua janela. Ele olhou para o rosto de sua mãe, Abigail, e assentiu com uma resignação assertiva e comportada com os cabelos negros encaracolados quase lhe cobrindo a zona dos olhos. A mulher, por sua vez, acariciou seu rosto e sorriu gentilmente, dando-lhe um beijo na testa seguido de um sonoro "boa noite, querido". O cheiro de cigarro barato e vinho exalavam de sua blusa e de sua boca, respectivamente, no instante em que ela se curvou para beijá-lo. Ele sorriu e largou a caneta na escrivaninha e então passou a se dirigir preguiçosamente até a cama.
⠀Quando ela saiu do quarto, Lucius respirou fundo e cuspiu para o lado. Agora, com a casa num silêncio fúnebre, ele olhou ao redor e acendeu o abajur que ficava no criado-mudo ao lado de sua cama. Havia algo de estranho no silêncio para ele, uma espécie de percepção provinda de algum lugar de sua mente que dizia com clareza que o silêncio era perigoso, quase como um aviso.
⠀Talvez fosse uma dessas abstrações infantis que crianças normalmente possuem, mas enquanto se cobria com o edredom até a linha do pescoço e esfregava os pés, Lucius pensou pela primeira vez que os monstros habitualmente se aproveitam do silêncio para atacar de surpresa, mas sabia que não podia fazer nada a respeito quando o primeiro o pegasse assim que ele dormisse. Ele fechou os olhos e por muito tempo tentou esquivar sua mente da ideia de ser consumido pelo silêncio assustador de sua casa, do cômodo de seu quarto, da respiração monótona da criatura imaginária debaixo de sua cama e de suas mãos — o vento — tateando o colchão e puxando seu edredom para perturbá-lo enquanto tentava lutar contra a insônia e os monstros que sua cabeça criava nas horas tediosas do dia, vendo o mundo sob o prisma de um garoto frágil e assustado. Em algum ponto, contudo, de olhos fechados, ele tornou a ouvir o silêncio e ficou curioso.
⠀A princípio o silêncio estava em sua própria cabeça e era representado pela força inexpugnável de seus pensamentos sombrios a respeito de seu cotidiano: a raiva que sentia da escola, da rua em que morava, do fato de que sua mãe fumava e do fato de nunca ter conhecido seu pai. Tudo isso reforçava a ideia de que ele tinha pouco controle sobre sua própria vida e isso o irritava, levando-o ao segundo estágio de escutar o silêncio, este que provinha de maneira um pouco mais profunda, inclinando-o a perceber com cuidado a ansiedade e pânico em seu peito — um silêncio que gritava, consumindo-o da ponta dos pés minúsculos e brancos ao último fio de cabelo: um silêncio que só existia dentro dele e que por isso não podia ser ouvido da mesma maneira que crianças normalmente não são ouvidas.
⠀O terceiro silêncio era oriundo de algo mais profundo ainda, acredite ou não. Vinha de algo mais forte, algo que temia por ficar reprimido por muito tempo. Este "algo" residia nas ruínas da ponte entre o intelecto de Lucius e seu emocional e poderia sempre ter estado ali, mas até então nunca havia se manifestado. Lucius percebeu em seu exercício de introspecção que para ouvi-lo precisava se aproximar o bastante, mas não queria fazê-lo. Ele sabia, talvez por se tratar de si mesmo, que era aquela coisa que havia plantado em sua mente que o silêncio era perigoso.
⠀Dele, o silêncio que podia ser escutado era o mais inquietante, o mais fúnebre e fatal. Era o silêncio angustiante da morte, do apagar da consciência e da sensação letárgica que precede o sono. Lucius resvalou para o sono profundo encarando-a, tendo aceitado completamente a existência dos três silêncios no sarcófago que era seu corpo e mente.
⠀Ele estava com medo, muito medo e mesmo que as árvores à frente de seu quarto houvessem voltado a projetar o som característico do farfalhar sombrio da noite e a garoa lá fora caísse nas bordas da moldura de sua janela, ele estava preso numa realidade que levaria muito tempo para compreender e jamais poderia fugir.
⠀Em sua mente inquieta antes de cair, ele lembrou da voz monótona de sua mãe dizendo, paulatinamente, "Lucius, querido, é hora de dormir".
𝐍𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐨 𝐀𝐮𝐭𝐨𝐫: 𝐵𝑜𝑚, 𝑒𝑠𝑠𝑒 𝑒́ 𝑠𝑜́ 𝑜 𝑝𝑟𝑜́𝑙𝑜𝑔𝑜, 𝑒𝑛𝑡𝑎̃𝑜 𝑒́ 𝑛𝑎𝑡𝑢𝑟𝑎𝑙 𝑞𝑢𝑒 𝑒𝑙𝑒 𝑡𝑒𝑛𝘩𝑎 𝑓𝑖𝑐𝑎𝑑𝑜 𝑚𝑎𝑖𝑠 𝑐𝑢𝑟𝑡𝑜 𝑑𝑜 𝑞𝑢𝑒 𝑜 𝑟𝑒𝑠𝑡𝑜 𝑑𝑜 𝑐𝑜𝑛𝑡𝑒𝑢́𝑑𝑜, 𝑗𝑎́ 𝑞𝑢𝑒 𝑒́ 𝑏𝑎𝑠𝑖𝑐𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑢𝑚𝑎 𝑖𝑛𝑡𝑟𝑜𝑑𝑢𝑐̧𝑎̃𝑜. 𝐸𝑢 𝑎𝑐𝑎𝑏𝑒𝑖 𝑔𝑜𝑠𝑡𝑎𝑛𝑑𝑜 𝑑𝑜 𝑟𝑒𝑠𝑢𝑙𝑡𝑎𝑑𝑜, 𝑒𝑛𝑡𝑎̃𝑜 𝑒𝑠𝑝𝑒𝑟𝑜 𝑞𝑢𝑒 𝑔𝑜𝑠𝑡𝑒𝑚 𝑡𝑎𝑚𝑏𝑒́𝑚, 𝑠𝑒 𝑝𝑜𝑠𝑠𝑖́𝑣𝑒𝑙 𝑎𝑣𝑎𝑙𝑖𝑒𝑚, 𝑐𝑜𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒𝑚 𝑒 𝑓𝑎𝑣𝑜𝑟𝑖𝑡𝑒𝑚. <𝟹
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O Diário dos Sonhos de Lucius.
ContoStephen King escreveu uma vez que ‟pesadelos existem fora da lógica, e há pouca diversão em explicações; eles são antitéticos à poesia do medo". Sempre pensei em como soa estranha - e assustadora - a percepção de que é de uma parte de nós que saem o...