Ali podia-se enxergar um rasgo enorme e seco na área que ladeava o terreno, no qual, em tempos pregressos, reinava uma lagoa repleta de peixes-dourados, piaparas, pintados, algas e caramujos. Hoje, o que restava era uma poça solitária do tamanho da palma de uma mão, cintilando o reflexo da lua como prata no chão. Uma noite melancólica que evidenciava o presente, a desbotar as cores do passado.
Em dado momento, o chirriar preponderante dos caborés foi atravessado por pés que calçavam chinelos surrados e pisoteavam a terra rachada do sertão.
— Só pode ser aqui. — Um menino preto, com cerca de oito anos de idade, cabelos crespos, trajes puídos e visivelmente amedrontado, travou o passo diante de um portão de ferro que, curiosamente, defendia uma igreja.
— É aqui sim — confirmou um segundo menino, um caboclinho engomado que calçava sapatos decentes, meias longas e vestia uma farda da escola católica recém-fundada na região. De pele alva e com um pouco mais de idade, possuía um semblante sereno.
A edificação diante daqueles dois era opulenta e, de certa forma, assustadora. O sofrimento estampado nas esculturas sacras, os vitrais reluzentes e as torres agudas pareciam prestes a desabar sobre suas cabeças.
A criança mais velha sacou algo enrolado em um pano úmido e entregou para a que estava ao seu lado, dizendo:
— Toma isso aqui e atira por cima da cerca. O mais longe que conseguir.
Mãos trêmulas apanharam o conteúdo.
— Mas o que é isso?
Uma puxada no tecido revelou as patas de uma ave abatida.
— É só uma galinha morta.
— Ugh! Que nojo! — O menino mais novo cuspiu no chão. — Por que diacho uma galinha morta?
Um sopro impaciente empurrou a resposta:
— Porque um amigo me disse que o padre costuma soltar os cachorros depois que fecha as portas.
Uma expressão de admiração espontânea nasceu no rosto do menino menor:
— Pela Santa Rita! Você é esperto, Melqui!
Apesar do entusiasmo, o elogio foi respondido com frieza:
— Você também é, Pedro. Mas — arqueou uma sobrancelha — ainda é muito menino.
— Como é? — rangeu o outro, em tom desafiador. — Muito menino? Pois olha esse arremesso aqui!
Ao fim da queixa, ele correu até o extremo do gradeado, jogou a isca com um asco risível e retornou, ofegante, até o amigo. Pouco tempo depois, atentos, vislumbraram através das grades os três vultos que cortaram velozes as roseiras e abocanharam a comida entre grunhidos e latidos.
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Diabolus Noctis - Conto
HorrorDois meninos, Melqui e Pedro, atravessam a madrugada do sertão inóspito com um único objetivo: invadir uma igreja para roubar um objeto escondido em seu interior. Porém, o que antes parecia apenas uma travessura, logo se transforma em uma caçada san...