Único

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Vício
Substantivo masculino
1. Defeito ou imperfeição grave de pessoa ou coisa.
2. Qualquer deformação que altere algo física ou funcionalmente.

Não posso decidir se você está me desgastando ou me usando bem
Eu só sinto que estou condenado a vestir o inferno de outra pessoa
(...)
Prefiro ser sua vítima, do que estar com você
Third day of a seven day binge – M.M

**

Jong-Woo já havia pensado naquilo antes, mas era exatamente o tipo de pensamento que se prefere esconder até de si mesmo. Quando aquele tipo de coisa vinha à mente, o mais saudável (e seguro) era afastá-la. Não é que tivesse problemas para controlar sua raiva, é só que seus instintos não tinham tantos escrúpulos como ele esperava que tivessem.

A sociedade pedia por um ideal de bondade e educação que não condizia em nada com os atos humanos no geral. Ele se perguntava quanto estrago faria caso cedesse, o quão ruim seria se acatasse a vontade mais egoísta, violenta e amarga que lutava para esconder. Nesses momentos, apertava as unhas pequenas nas palmas das mãos até que a dor lhe causasse algum incômodo. A vida era cheia de sapos a serem engolidos, e aguentar seus golpes tornava-se mais difícil a cada dia.

Desde sua chegada a Éden, poderia facilmente resumir sua existência em uma só palavra: pesadelo. Existe um limite do quanto alguém aguenta sem "quebrar", e o ex-estagiário já o havia ultrapassado há algum tempo.

Foram tantos detalhes, tantas coisas pequenas e acumuladas que culminaram na explosão insana que era até mesmo difícil de assimilar. Será que estava fadado a isso? Esse era seu destino desde o começo?

Sentado sob o quadril de Moon-Jo, com a faca apontada debilmente para seu pescoço ferido, ele engoliu em seco. Sentia o gosto de ferrugem na boca, praticamente o corpo inteiro doía. A camisa grudava nas costas feridas, estava quente e empapada de sangue e suor. Queria matá-lo não só por tudo que lhe fizera, mas por saber que nunca haveria no mundo alma tão parecida à própria. Ele se reconhecia no dentista, e isso era um caminho sem volta.

Moon-Jo sorria. O rosto bonito transmitindo uma tranquilidade etérea que um monstro como ele jamais deveria conhecer. Estava satisfeito. Sua obra-prima finalmente concluída. Tudo que Yoon lutou para esconder; estava finalmente à mostra. Para bem ou para mal, ele havia arrancado todas as máscaras de si.

Àquele tipo de nudez era impudica. Imoral em todas as vertentes possíveis. Desnudar um corpo era simples, fácil até. Despir uma alma era mais difícil, exigia esmero e atenção. Seo cuidara pessoalmente disso, de impor dificuldades e desafios cada vez piores para que o mais novo pudesse ser livre. Ele lhe deu tudo, mesmo quando o outro não queria nada.

"Finalmente humano", uma frase simples, formada de duas palavras. Um pensamento obsceno demais para ser dito. Matar aqueles degenerados fazia do desolado 303 mais ou menos humano? Não conseguia decidir, estava hipnotizado por toda a adrenalina que ainda percorria as veias. Lá estava a figura mais esquisita, medonha e bela que já vira em toda a sua vida, morrendo na palma de suas mãos.

O prazer que sentia ao ver os lábios cheios do outro perdendo a cor; o som fraco da respiração e o tom de voz grave prometendo que estariam para sempre juntos. Mesmo que negasse sua essência assassina, jamais poderia recusar o sentimento agridoce que conviver com aquele homem havia libertado em si.

O mais novo se abaixou, deixou que a testa encostasse na do outro. Seus olhos pequenos mergulhados no negrume à frente. Encarar Seo era como se jogar no vazio: perigoso, intenso e sem retorno. Se ambos eram monstros, por qual motivo sentia que havia sido devorado pelo canibal?

Toda a esperança, retenção e possibilidade de ser como antes se apagavam a cada filete de sangue que escapava da mão do inimigo. O aperto no pescoço se tornava mais fraco a cada segundo. Ele estaria morto em pouco tempo. Agora entendia do que aquele homem era capaz e por que todos pareciam temê-lo, respeitá-lo no inferno esguio dos corredores da pensão.

— Morra, - Murmurou baixinho, endireitando o corpo. — Morra. — Repetiu, erguendo o braço e pegando impulso. — Morra! — Gritou por fim, desferindo o último golpe.

**

— Amor, ei, acorda. — O escritor sentiu o pescoço ser segurado com cuidado, o toque cálido descendo para seu peito e repousando ali. — Está tendo um pesadelo de novo.

Ele resmungou e se alinhou mais ao corpo do mais velho. Não queria abrir os olhos para a realidade. Era sim outro pesadelo que tivera, mas também uma memória distante do que foi e poderia ter sido. Moon-jo não morrera naquela noite, assim como não mentira quando dissera que estariam sempre juntos.

Reconhecia o cheiro dele nas próprias roupas, nos lençóis que dividiam e até mesmo na própria pele. Não era amor, mas uma dependência mórbida e dolorosa que os mantinha próximos.

— Está pensando que poderia ter sido diferente, não é? Olhe pra mim. — Mandou. Ele gostava de mandar, e adorava ser desafiado. Coisas que Yoon aprendera com pouco tempo de convivência. — "Ele é mais eu do que eu mesmo. Seja lá do que nossas almas são feitas, a dele e a minha são iguais". Isso é de um romance, não é meu tipo de leitura, mas combina perfeitamente conosco, não acha, amor?

Jong-woo ergueu o rosto e puxou seu queixo com a mão, unindo os lábios. Suas respostas costumavam ser assim agora, ferozes como seus beijos. Elas tomavam som com gemidos, passeavam pelos corpos com unhas e dentes, investidas e cortes.

Pouco lhe importava o romance ou o que Moon-jo dissesse, nas incontáveis desgraças que passara desde que o conhecera, o residente do 304 o viciara não só em si, como também na doce e cruel vontade de matar. Ele era a parte que aprendera a odiar, ainda que ferisse, que doesse, jamais conseguiria abrir mão dela, ou melhor dizendo, dele.

Vício (Strangers From Hell)Onde histórias criam vida. Descubra agora