"Eu o conheci em Setembro. Ele era amigo de uma amiga minha, e fomos todos para uma festa em comum da faculdade. Me conhecendo como me conhece hoje, deve saber que eu nunca gostei muito de ir em festas. Mas eu me convenci a ir, pensando na minha amiga que queria que eu estivesse lá. Talvez eu sempre tenha pensado muito nos outros..."
"Enfim, na festa, a gente se falou pouco no começo. Ele estava mais interessado em servir de ponte de outros ali presentes; ele sempre fora muito bom nisso. Mas algo nele realmente chamou minha atenção: ele era misterioso e eu sempre gostei de jogos de enigmas. Mais do que isso, eu acho que bebi um pouco além da conta aquele dia ou a bebida barata comprada por universitários fudidos bateu mais forte do que eu estava acostumada. Só sei que chegou uma hora que eu não estava processando informações direito, desejando com todas as minhas forças que eu somente pudesse ir pra casa. E foi nesse momento que ele começou a conversar comigo."
" 'Eu não dou essa oportunidade para outras garotas', ele disse ao me dar o falso privilégio de conhecer mais sobre sua vida com perguntas superficiais como qual era a cor favorita dele ou quantos irmãos ele tinha. Ficamos naquilo a noite inteira, até no ônibus de volta para casa. Era bom conversar com alguém, e me manter afastada dos outros que sugavam minhas energias era melhor ainda. Desci uma parada antes e, quando cai na cama, senti algo no estômago. Malditas borboletas que bateram asas depois de uma conversa tão simples mas tão bonitinha para a ingênua eu da época."
"Depois disso, nos encontramos outras vezes, em outras saídas com amigos. Conversávamos, trocávamos mais das tais perguntas, até que ele confiantemente me pediu meu número. Adicioná-lo a minha lista de contatos talvez tenha sido a pior ideia que eu já tive na vida... Mas, enfim, passamos a conversar muito daquele dia em diante. Não havia uma hora no dia que eu não pensasse nele, que eu não respondesse alguma de suas mensagens com uma figurinha ou um meme ridículo. Era legal, era bom ter a companhia de um amigo... Mas sempre houve algo estranho ali, algo que eu não estava acostumada. O modo como ele falava às vezes era estranho, dando ideias de que sempre havia algo de errado na minha vida que atrapalhava a gente, como se todos os problemas na nossa relação vazia fossem culpa minha. Bom, eu só conclui isso mais tarde, obviamente, mas sempre tinha um pé atrás, o sexto sentido dizendo para eu ir com calma. E eu sempre ia, felizmente."
"Às vezes, nós nos ligávamos a noite. Minha casa sempre foi muito barulhenta e eu gostava de aproveitar o silêncio da madrugada. Porém, era melhor ainda quando eu podia ouvir a voz dele, me fazendo perguntas estranhas ou um pouco mais ousadas às 03h00min. Ele era muito carente, e gostava que na hora de nos despedirmos eu sempre prolongasse o boa noite. E eu o fazia por ele... Quando ele também me pediu um abraço mais longo em outra vez que saímos, eu também fiz isso por ele, já que contato físico não é uma prioridade na minha vida. Quando ele pediu para eu escrever um texto para ele, quando ele pediu que eu o ajudasse a escolher uma blusa nova, quando ele pediu para eu deixar de fazer algo programado para dar atenção a ele... Eu sempre fiz tudo."
"Hoje, depois que tudo passou, eu reparo que eu fiz muita coisa por ele. Eu sempre cedi muito naquela época, empurrando-me do meu próprio helicóptero achando que a queda era necessária e boa para meu crescimento pessoal. Ele dizia que me falava coisas para me ajudar, mas acho que, no fundo, ele estava tentando me mudar para eu caber em seu mundo. Eu já era bonita a seus olhos, interessante em seu julgamento tolo, suficientemente inteligente e perfeitamente burra para seguir com uma conversa e cair em seu papo furado; abertamente confortável para me mudar completamente para caber em seu mundo enquanto eu destruía o meu. Foi patético, mas eu não me culpo. Eu só queria um amigo, uma companhia, e pra quem sempre se achou torta diante dos outros, é fácil dar razão a qualquer um que te diga que você é quebrada e que... voluntariamente se oferece para te consertar."
"Mas, voltando: continuamos nessa durante alguns bons meses até que chegou o momento em que ele deu o basta. Ele queria algo mais, ele sempre quis e sempre deixou isso muito claro, mas também falava que eu podia ir no meu tempo. Engraçado como ele mudou de ideia sobre isso e do dia para noite começou a me cobrar por ações. Temendo perder o que eu tinha até ali, eu o fiz. Eu me entreguei a ele, de corpo e alma, disposta a transformar aquela amizade em amor porque eu já confiava nele, porque ele já era um cara legal. Caramba, depois de tantos meses sondando, perguntando, levantando dados, eu finalmente achara alguém e estava no tempo certo de me entregar para ele! Além disso, a experiência de troca foi muito boa e eu voltei para a casa com as tais borboletas quase escapando pela boca nos sorrisos que eu oferecia para o nada."
"Foi tudo muito legal, muito bonito, muito vivo... Ou não. Porque ele não era o cara certo... Depois que aconteceu, que ele teve o que tanto quis, ele sumiu. Mal me respondia, desconversava sempre que eu falava de marcamos algo. Meu sexto sentido gritou, eu me amaldiçoei. Derrubei pilhas de papel em minha cabeça, o levantamento minucioso que fizera de sua pessoa, e ateei fogo na sala de provas sobre sua vida. Era tudo mentira. Ele pacientemente esperou durante meses, me manipulou em muitas conversas para nada. Bom, pelo menos pra mim. Acho que ele saiu mais do que satisfeito com isso tudo. Moldou a garota perfeita para o momento perfeito e só..."
"Um dia, ele finalmente disse que não dava mais. Disse que a coisa tinha esfriado ou algo assim. Conveniente demais, não? Toda uma relação milagrosamente esfriar depois de ele ter tido exatamente o que ele queria com ela: uma boquinha para beijar, um corpinho para tocar, um rosto bonito bem próximo do seu. Foi nossa última ligação e eu me arrependo de não ter mandado ele para o inferno naquele dia. Apesar que não o culpo completamente... O erro foi meu em acreditar. Tal como ele criou sua boneca perfeita, eu também devo ter criado uma imagem perfeita de si para mim. Vai ver ele se decepcionou com meu beijo com gosto de jiló e me largou por isso, enquanto eu me decepcionei... com todo o resto."
Ian ficou calado durante um tempo. Os sons das ruas eram as únicas coisas que preenchiam o vazio do quarto depois de eu ter contado a ele um de meus fracassos. A certa altura, fiquei incomodada e ergui a cabeça. Deitada sobre seu peito nu, encontrei seus olhos. O verde nunca esteve tão fosco.
- Sinto muito por ter acreditado tanto.
- Tá tranquilo. – sorri. – Aprendi com isso que existem pessoas ruins mesmo depois de eu julgá-las como boas, e que ninguém é realmente responsável por aquilo que cativa ou pelas expectativas que coloca sobre outro alguém. Acontece. Felizmente, também aprendi que não devo ceder tanto. Antes tarde do que nunca.
- Você não precisava passar por isso para aprender, Eve. É cruel.
- Eu sei... Mas foi como aconteceu.
Voltei a deitar sobre seu peito e senti seus dedos acariciarem o alto da minha cabeça, entrelaçando-se nos fios de meu cabelo. Fiquei olhando o nada, os olhos secos começando a marejar, até que finalmente cai em um sono profundo.
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o preço do saber
Short StoryOne-shot inspirada na música Yes girl, da Bea Miller. História planejada, vivida e escrita para o desafio mensal da página do Facebook Sodalício das Pétalas. Este é o oitavo de uma série de contos sobre Eve e Ian.