Capítulo 1

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Marcos abriu os olhos com dificuldade. Não era dado a bebedeiras, justamente por saber que não suportaria a ressaca no dia seguinte. Sentia que a cabeça ia explodir. Ficou olhando para a porta pelo que pareceu um longo tempo, sem ter certeza se estava pensando, mas com a certeza que estava se sentindo extremamente desconfortável deitado no chão. Foi aquela dor de quando se dorme em cima do braço que o acordou. Mas quando tentou ajeitar o corpo percebeu que suas mãos estavam atadas nas costas. E despertou pra valer. Percebeu que nunca tinha visto a porta que passou encarando nos últimos minutos. Ou a sala onde estava. Tentou fazer como nos filmes e passar os braços por baixo do corpo para ficar com as mãos para a frente, mas depois de alguns tempo se debatendo como um peixe fora d'água aceitou o fato de que a realidade é mais dura que os filmes de ação que assistia. Se resignou a virar a cara no chão e se contorcer erguendo a bunda feito uma minhoca na tentativa de, ao menos, conseguir sentar. "Ainda bem que ninguém viu isso" pensou como prêmio de consolação, imaginando como seria a visão de fora de si mesmo. Ninguém viu isso? Olhou pra cima imaginando se havia câmeras na sala. Nenhuma que pudesse identificar. Se houvesse alguma, com certeza era uma câmera escondida. Será que isso era uma pegadinha? A dor na cabeça afirmava que não. Tentou descansar a cabeça na parede e sentiu uma dor lancinante. Olhando pra onde acabara de erguer seu corpo, pode notar o sangue onde antes estava sua cabeça. Definitivamente não era uma pegadinha. E definitivamente não estava de ressaca.

Um sequestro. UM SEQUESTRO! Soltou o ar pela boca num misto de graça e estupefação. Com certeza pegaram a pessoa errada. Era só um pobre coitado, com ênfase no pobre. Poucas pessoas perceberiam que ele sumiu e duvidava que alguém se prestasse a pagar um resgate. Tão pouco teria condições de pagar por si mesmo. Marcos tinha acabado de perder o emprego. Lembrou que tinha acabado de perder o emprego. Lembrou que havia mandado o chefe enfiar o emprego naquele lugar. Lembrou que estava tão nervoso que quase não atendeu quando Heitor ligou. Lembrou que foi convencido a afogar as mágoas nesse clube novo que inaugurou. Lembrou de ter odiado a ideia, mas não queria ir pra casa. E não se lembrava de mais nada até acordar com as mãos amarradas.

Heitor poderia perceber que ele sumiu. Mas não hoje. Nem amanhã. Ou na próxima semana. Marcos era mais introvertido do que gostaria de admitir. Se sentia esgotado rapidamente na presença de muitas pessoas. Saía das festas sem se despedir e costumava ficar tempos sem responder. A maioria das pessoas se irritava com isso. Em tempos de tecnologia, horas sem responder é um sinal de ofensa, quem dirá dias. Mas Heitor o conhecia a tempo suficiente pra saber que não era má vontade ou falta de gosto, era só assim que Marcos era e tudo bem. Nesse exato momento, Marcos odiava a ideia de ter um amigo tão compreensivo. Talvez fosse a única esperança dele e não achava que tinha uma semana pra esperar.

Pegaram a pessoa errada. Era a única explicação plausível. Não era alguém importante ou famoso ou rico. Não era ninguém, isso só poderia ser um engano. Esse pensamento não o confortou. O que fariam quando percebessem que pegaram a pessoa errada? Pedir desculpas e soltá-lo não parecia uma opção. Se a intenção foi pegá-lo, descobririam que não tinha um tostão e acabaria morto. Se foi um engano, precisariam se livrar dele e acabaria morto. Poderia tentar escapar, mas pensando na dificuldade que teve apenas para conseguir sentar, com certeza acabaria morto. Não conseguir pensar em uma opção que não terminasse em morte. Ainda assim, era óbvio que precisava sair dali.

Mas onde exatamente era "ali"? Realizou a ideia de que não fazia ideia de onde estava, mais um fato para adicionar a lista "que merda é essa que está acontecendo agora?". Olhou em volta, dessa vez procurando por alguma pista. Não que houvesse muitas chances pra isso. O quarto onde estava, ou sala, ou recinto, não se decidia de como iria chamar, era minúsculo. Três por três provavelmente, talvez menos. Não havia janelas. Havia um som abafado vindo do teto, o que o fez pensar que estava no porão de algum prédio. Uma lâmpada incandescente iluminava o quarto e um cano se estendia do teto ao chão no canto esquerdo da porta manchando de umidade as duas extremidades da parede. A sala era pintada de branco e era nítido que aquela pintura foi feita há muito tempo atrás. Próximo à porta a tinta havia descascado, revelando uma parede acinzentada que Marcos não decidiu se era tinta cinza, mancha ou cimento. A porta, também branca, era de metal e mostrava sinais de ferrugem nas extremidades. Será que conseguiria arrombar a porta? Apostava que não. E tinha um pouco de medo do que estaria o esperando do outro lado. Tudo naquele cenário gritava prisão, mas não dava nenhuma pista significativa para seu habitante atual.

Esgotada todas as possibilidades plausíveis, Marcos chegou à única alternativa que restava: começou a gritar por socorro. Primeiro quase que envergonhado, como se a ideia de uma pegadinha ainda não tivesse sido completamente descartada. Depois o medo tomou lugar da vergonha e passou a usar todo o ar que havia nos pulmões. A cabeça doía cada vez que gritava, mas a ideia de morrer abandonado sem nem saber o porquê fazia a dor não ser sua maior preocupação. Se pra pegá-lo, acertaram a sua cabeça desse jeito, imagina o que fariam pra se livrar dele.

O grito foi cortado no ar quando uma luz intensa apareceu por baixo da porta. Ouviu os passos se aproximando. Enquanto ouvia as trancas sendo abertas, concordou consigo mesmo que realmente não teria conseguido arrombar a porta. A porta abriu vagarosamente, quase num movimento involuntário. Marcos não havia notado quão escura era a sala até ser atacado pela luz que vinha do lado de fora. Com certa dificuldade viu se formar a silhueta de alguém. Entre o incômodo da luz direta e o medo de encarar seu captor, Marcos se esforçava para abrir os olhos.

- Onde está? – E essas palavras ressoaram diferente em seus ouvidos, obrigando Marcos a olhar pra direção da voz.

- Onde está? Repetiu. E esperou.

- Isso é um engano, eu não sou ninguém. Eu não tenho dinheiro. Eu... sua mente o mandou calar a boca. Por que está se esforçando pra parecer inútil? Eles vão te matar. Respirou. Ou fingiu que respirou. – Eu não sei.

Passaram-se alguns segundos, ou poderia ter sido séculos. A silhueta virou puxando a porta consigo, sem trancá-la, no entanto. Seus passos se afastavam no que parecia ser um corredor, mas era possível ouvir o som de algo sendo arrastado. De repente, a porta se abriu num chute e Marcou deu um pulo onde estava. Mal se recuperou, viu um corpo ensanguentado sendo lançado a seus pés, o que tornou impossível não gritar.

A porta se fechou, trancada pra valer dessa vez, a escuridão engolindo seus olhos. O cheiro do sangue invadiu suas narinas, mas nem ao menos podia tapar o nariz.

Amarrado, trancado num quarto escuro, completamente sem pistas, com um corpo ensanguentado a sua frente. A cabeça de Marcos rodopiava de tantas perguntas que poderia desmaiar. Mas uma delas não saía do topo de sua mente: de onde conhecia aquela voz? 

SehnsuchtWhere stories live. Discover now