Capítulo 3

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S/n já estava esperando só lado de fora da sala de Hink quando cheguei lá. Mais uma vez ela vestia roupas masculinas, mas parecia limpa e saudável. Seu cabelo loiro tinha sido lavado e escovado. Mesmo que com os cabelos limpos fizesse com que ele caísse em mechas irregulares, como se ela tivesse cortado sozinha com uma tesoura ruim.

Sentei ao lado dela, consciente por completo do meu corpo, tanto que me esqueci de como sentar de modo casual e tive que arranjar meus membros de propósito. Não conseguia acertar a postura, então meio que caí para frente em uma pose desajeitada, mas eu não queria me mover de novo pois conseguia ver que ela estava olhando pra mim.

S/n se sentava com os joelhos apertados contra o peito. Ela lia um livro com as páginas amassadas. Eu não conseguia ler o título, mas vi que era um livro de poemas. Quando ela me pegou espiando, eu esperava que ela fechasse o livro, mas, em vez disso, ela o virou um pouco na minha direção para que eu pudesse ler.

O poema que S/n estava lendo (talvez ela tivesse lido muito ele pois a página tinha dobras, manchas de comida e estava em um mal estado) era de um cara chamado Pablo Neruda, nunca tinha ouvido falar. O título era "A dança", então comecei a ler, mesmo que Hink não tivesse conseguido me fazer gostar de poesia.

Dois versos tinham sido destacados

Amo-te como se amam certas coisas obscuras
Secretamente, entre a sombra e a alma

Hink saiu de sua sala naquele momento, e S/n fechou o livro na hora antes que eu pudesse terminar de ler.

—Ah, vejo que já se conheceram- disse Hink

Levantei depressa. S/n vacilou até a ponta do banco e se ergueu devagar. Eu me perguntei pela primeira vez o quão grave era aquela lesão. Ela havia nascido com problema na perna ou foi acidente trágico na infância?

—Podem entrar.

A sala de Hink ficava no final de um corredor. Paredes no tom de rosa claro, plantas artificiais, lâmpada amarelada. Segui Hink, meus passos lentos, pois queria acompanhar S/n. Mas, mesmo com os passos lentos, ela ainda ficava para trás. Hink estava a dez passos de distância de nós então me apressei e a deixei para trás.

Quando chegamos na sala de Hink, ele fez gestos para que nos sentássemos.

—Vocês dois estão aqui, por causa de suas habilidades de escrita. Quando chegou o momento de escolher os editores-chefes, não consegui pensar em nenhum dupla melhor que...
—Não— disse S/n, só então percebi que era a primeira vez que eu a ouvia falar. Ela tinha uma voz forte, clara e profunda, que não se encaixava na forma "tímida" que ela exibia
—Desculpe, como assim?— disse Hink
—Não— repetiu S/n
—Eu... Não entendo— disse Hink com uma cara de assustado
—Não quero ser editora. Obrigado por pensar em mim, de verdade. Mas não— S/n pegou sua mochila e se levantou
—Srta Rodriguez. Digo, Srta S/n. Martin me falou de você antes do começo do ano letivo e me pediu para olhar seus trabalhos ainda de East River. Você ia assumir como editora se não tivesse mudado de escola. Não é isso?
—Eu não escrevo mais.
—É uma pena. Seu trabalho é lindo, você tem um talento com palavras.
—E você tem um talento para clichês

Hink ficou boquiaberto.
S/n suavizou um pouco.

—Desculpe. Mas são só palavras. Elas não querem dizer nada.

S/n olhou pra mim com uma expressão de desaprovação, então lançou sua mochila sobre os ombros e saiu da sala. Hink e eu ficamos sentados em silêncio ali, tentando processar o que havia acabado de acontecer agora a pouco. Demorei para perceber que estava bravo, também apanhei minha mochila, me levantei e caminhei até a porta.

—Podemos falar sobre isso amanhã?— eu disse a Hink
—Sim, sim, é claro. Venha antes da aula— Hink disse e eu saí pelo corredor, e notei que S/n não estava lá. Quando sai do colégio ela estava quase saindo da área da escola. Ela conseguia se mover rápido quando queria.

—Ei!— gritei

Ela se virou, me encarou e depois voltou a andar

—Ei!— eu disse
—O quê?— ela perguntou, ainda caminhando rápido. Um carro atrás de nós buzinou. S/n apontou para a bengala e então sacudiu para eles.

—Bom...— Eu disse, mas não consegui encontrar as palavras para dizer o que queria. Eu era um escritor decente, mas falar? Com sons? Da minha boca? Isso era um inferno.

—Bom o quê?
—Eu não tinha planejado a conversa depois desse ponto.
—Você parece puto.
—Eu estou puto
—Por quê?
—Porque as pessoas se matam trabalhando por anos, aí você aparece do nada, tem a vaga oferecida numa bandeja e recusa?
—Você se matou trabalhando?
—Pode acreditar. Tenho bajulado Hink desde que eu tinha, tipo, quinze anos.
—Bom, parabéns. Não sei o por que de estar bravo. Existe apenas um editor, não é? O fato de eu recusar não afeta você de maneira alguma.
—Bom... Eh... Quer dizer... Por que você recusou?
—Porque não quero fazer isso.
—Mas...
—E comigo ausente, você pode tomar todas as decisões e deixar o jornal do jeito que você imagina nos últimos dois anos
—Acho que sim... mas...
—Então você não tem como sair perdendo. De nada, aliás.

Prosseguimos em silêncio por mais alguns minutos, até que minha raiva tivesse passado por completo e eu não conseguisse lembrar o por que eu a tinha perseguido para começo de conversa.

A Química [Adaptação Payton Moormeier]Onde histórias criam vida. Descubra agora