PRÓLOGO

10 4 0
                                    

Escarlate. Aquela era a cor do céu naquela noite, quando subi os olhos pela janela do trem.

Uma grande mancha avermelhada cortava o escuro da abóbada celeste no horizonte, em um espetáculo astronômico que colocava um pouco de beleza na pequena cidade que crescia ao redor dos trilhos.

Belo Vale.

Com não mais que sete mil habitantes estranhamente misteriosos, aquele era o nome da cidade grafado na minha certidão de nascimento.

Depois de tanto tempo distante daquele lugar, era incapaz de me lembrar de todos os seus detalhes. Ainda assim, algumas memórias pareciam recentes na minha mente: a mercearia no centro da cidade, onde seu Joaquim vendia pirulitos coloridos com gosto de algodão-doce, a igreja que vigiava todos os moradores do alto de uma escadaria e a fazenda — o ponto mais contraditório de todos. Recordava-me de ter vividos momentos felizes naquelas terras cercadas de verde em todos os cantos, mas recordava-me também que os últimos dias lá ainda eram os piores de toda a minha vida.

Engoli em seco quando meu subconsciente me lembrou de que deveria pisar naquele lugar em breve. Não sabia o que esperar daquele reencontro — e sempre detestei tudo o que fugisse do meu controle.

O apito estridente do trem me despertou daqueles devaneios, anunciando a chegada na cidade para a única passageira que ocupava os assentos aveludados imersos na escuridão da noite.

Um rapaz, vestido com o uniforme azul-marinho da companhia de viagens, entrou no vagão pela porta principal e puxou uma cordinha que pendia do teto, acedendo as escassas lâmpadas que estavam dispostas de maneira espaçada entre as poltronas.

Meus olhos reclamaram pela claridade instantânea, mas me forcei a mantê-los bem abertos.

— Já iremos desembarcar, senhorita. Suas malas? — perguntou o garoto, enquanto fiscalizava as demais poltronas, mesmo que fosse a única ali.

— Tenho duas no bagageiro além dessa. — respondi, indicando a pequena mala de mão que descansava no assento ao meu lado. — Insisto que eu mesma a leve.

O rapaz assentiu.

— Por que mulheres têm que levar todo o mundo consigo quando vão viajar?

Revirei os olhos.

Por que os homens são sempre tão inconvenientes com seus comentários prontos e piadas sem o mínimo de graça?

Levantei-me para pegar a bolsa, e, como se não houvesse mais nada ali que pudesse piorar, o trem diminuiu a velocidade de uma maneira abrupta, tornando-se impossível manter o equilíbrio.

Aterrissei no chão com os joelhos, do outro lado do vagão.

Me recusei a olhar para cima quando ouvi o murmúrio de uma risada abafada.

— Ele sempre faz isso. É incapaz de parar o trem como os outros maquinistas o fazem. — comentou aquela voz infantil, me oferecendo uma das mãos para levantar.

Recusei, levantando-me por conta própria enquanto o trem ainda se movimentava, tão lento que ameaçava parar a qualquer instante.

Peguei a bolsa e suspirei em alívio quando a porta do vagão se abriu, revelando a estação, igualmente escura, do lado de fora.

A brisa noturna invadiu o espaço por aquela abertura e soprou meus cabelos para trás. Havia muito mais que oxigênio naquele sopro. Consigo, ele carregava também as memórias de um tempo que, há muito, ficara para trás. As brincadeiras da infância, os amigos que fizera ali, todas as aventuras que havia vivido naquele lugar. Todas as lembranças que tentava ignorar penetraram pelas minhas narinas e tomaram conta dos meus pensamentos.

A MARCA ESCARLATEOnde histórias criam vida. Descubra agora