CAPÍTULO 2

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Olhei para cima, correndo os olhos pela placa amarela encardida que adornava a fachada da pequena mercearia.

Padaria Nossa Senhora das Dores.

Não havia nome mais interiorano que aquele.

Arrastei as malas pelo pequeno degrau e cocei a garganta, em uma tentativa bem sucedida de atrair a atenção do senhor de uns quase sessenta anos que contava os cruzeiros do outro lado do balcão.

— Pois não? — ele perguntou, por cima das lentes empoeiradas dos óculos. — A senhorita não é da cidade.

Sorri, envergonhada. Aquilo parecia nítido a qualquer pessoa.

— Não... não sou. — respondi, enquanto meus olhos passeavam pelo ambiente estreito da pequena mercearia. As paredes eram cobertas por azulejos amarelados, da mesma cor da placa, enquanto ladrilhos azuis compunham o chão, em uma combinação pouco harmoniosa. No balcão transparente que dividia o lugar em dois espaços, uma variedade de quitutes adornava as prateleiras. — O senhor sabe onde eu posso encontrar um táxi, ou...

Antes que terminasse de falar, o velho começou a rir, em um timbre rouco que parecia arranhar os meus ouvidos.

— Não entendi. — falei, ríspida.

— Táxi, menina? 'Cê quer um táxi pra andar em Belo Vale?

Ergui o queixo, ultrajada. Não era como se aquilo fosse algo fora do normal — qualquer cidade que se preze deveria ter, no mínimo, um tipo de transporte particular. Sem me despedir, girei a ponta do salto no chão e dei meia volta, caminhando no rumo da porta escancarada que dava acesso à rua.

'Peraí, moça! Eu acho que sei de alguém que 'tá procurando pela senhora.

Em um vulto quase imperceptível, ele atravessou o degrau ao meu lado e caminhou em passos tortos e desajeitados pela calçada, enquanto cobria a testa com uma das mãos espalmadas.

— Bastião! Bastião! — o senhor começou a gritar, acenando de forma desesperada com as mãos. Quem raios era bastião e por que ele teria interesse em me procurar? — A baronesinha deve ser essa menina aqui, 'ó!

Baronesinha.

Ouvir aquele apelido me fez estremecer, trazendo à tona uma memória que nem mesmo imaginava existir ainda.

Balancei a cabeça de imediato, dispersando qualquer pensamento inoportuno que pudesse surgir. Não havia motivo algum para tirar de um baú soterrado as lembranças que ele guardava.

Um homem, que havia surgido de algum lugar que fui incapaz de deduzir, murmurou algo para o vendedor que o fez assumir um semblante sério.

Aquela figura misteriosa, vestida de preto dos sapatos ao chapéu de abas curtas que encobria sua calvície, se aproximou em passos largos.

Senti meu corpo retrair e apertei com força as alças da maleta que levava. Era tão sombrio que mais parecia um mensageiro da morte a um humano. Era como se, de certo modo, a sombra que vi correr através da estação na noite passada pudesse se materializar.

Retrocedi um passo, tropeçando acidentalmente contra o degrau que crescia por trás dos meus pés. Antes que pudesse perder o equilíbrio e perder de vez a escassa dignidade que me sobrava, sua mão pálida se fechou contra o meu braço e, em um solavanco, eu estava de pé novamente.

— Dona Maria Cecília. — falou, em um tom tão áspero quanto uma lixa.

— S-sou eu. — respondi, praguejando mil vezes por ter gaguejado. Não deveria ser fraca, nem mesmo quando algo tão atípico estava diante dos meus olhos.

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