Gabriela entrou em casa com uma sensação boa habitando no peito e um riso dançando nos lábios. Afinal, o cara que quase afundou a sua cabeça com um livro não era um sem noção qualquer, até que ele parecia legal, pensou.
E tinha um sorriso muito bonito. Achava que até era o mais bonito que já tinha visto.
Não que ela exatamente reparasse ou flertasse com caras o tempo todo. Já que quando olhavam para ela, parecia que a enxergavam apenas pela metade. Conseguia ver isso pelo olhar que direcionavam, o exato segundo quando viam sua cadeira e o semblante caia numa mistura de decepção e pena – aquele maldito olhar de pena. Por isso, nunca pensou que encontraria alguém que tivesse um olhar diferente em relação a ela.
Mas não se culpava. Apenas preferia não se preocupar. Tinha outras coisas para fazer. Poderia existir essa pessoa? Claro. Mas... será que valia o risco?
— Vó, cheguei! – grita, avisando da sua presença.
Não houve resposta.
— Vó? Tá aí? – grita de novo, com os ouvidos atentos para ouvir qualquer tipo de retorno.
Nada.
— Mas pra onde ela foi? – perguntou a si mesma, quando fez a curva pela mesa e conferiu a geladeira para ver se havia algum bilhete, onde sua avó geralmente deixava avisando para onde ia e que horas voltava.
Nenhum aviso.
Contornou a mesa novamente e foi em direção ao quarto. Abriu a segunda gaveta da cômoda de madeira, que ficava em frente a sua cama, e escolheu um short jeans e uma regata verde com um girassol no bolso direito. Foi em direção ao banheiro e pensou no que iria comer logo depois do banho.
Sentindo-se limpa, deslizou sua cadeira até a sala, pegou o controle remoto apoiado no braço do sofá e ligou a TV, sem se importar muito com o que estava passando, queria apenas um barulho de fundo, quando estava sozinha.
Abriu a geladeira e encarou seu conteúdo. Depois de ficar mais de um minuto olhando pra dentro sem decidir nada, resolveu que iria almoçar. Não gostava de fazer isso sem sua avó, mas ela não tinha deixado muita escolha, não é mesmo? Não sabia quanto tempo deveria esperar, então vai comer e pronto.
De frente para a TV equilibrando o prato em cima de uma almofada do sofá, em cima das pernas, Gabriela foi zapeando pelos canais até encontrar uma série nacional: Rotas do Ódio. Era o episódio em que uma delegada investigava uma quadrilha de skinheads por clonar cartão de crédito em São Paulo. Já tinha assistido aquele, mas veria de novo assim mesmo, era um dos bons.
***
Quatro horas já haviam passado e uma inquietação começava a formigar pelo corpo de Gabriela. Manteve a porta aberta e olhava uma vez ou outra quando saía e voltava de um cômodo.
A tela do celular não exibia nenhuma notificação que queria. Onde raios ela se meteu? pensava insistentemente.
Ela pode ter perdido o celular. Talvez tenha sofrido um acidente. Uma vez assistiu uma reportagem de senhoras de idade que saíam de casa, perdiam a memória e não conseguiam mais lembrar o próprio endereço. Será que estava perdida? Era muito tempo pra ficar fora de casa.
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Dançando entre estrelas
RomanceA mobilidade urbana não é justa para todos e Gabriela sente isso todos os dias. Sua cadeira de rodas já passou por poucas e boas pelas ruas tortuosas de SP. A idealização absurda de seus pais matou o sonho que cultivava desde criança: ser bailarin...