A Chance

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Mesmo durante o dia o quarto encontrava-se escondido dentre a penumbra que era formada pelas fendas do telhado e janelas. Ele havia reforçado todas as paredes do local com tábuas, deixando-o abafado e sufocante o suficiente para que seu fôlego fosse escasso e não tivesse energia para possíveis tentativas de fuga. O que não me impediu de diversas vezes empurrá-lo ou desmaiá-lo com a cadeira velha que servia de criado-mudo e até dopá-lo com os calmantes que ele insistentemente colocava em sua comida ou bebida ao cair de toda noite. As consequências variavam de acordo com seu humor. Nos dias bons, ele a castigava com inanição. Nos dias ruins, ele a despia e fazia sangrar por todos os poros.

As provas do crime cotidiano encontravam-se por todo e qualquer espaço daquele milimétrico lugar. A primeira marca do próprio sangue datava do meu décimo quinto aniversário, logo após mamãe desaparecer. Podia recordar-se e reviver a cena a qualquer instante. Estava brincando com a sua boneca de pano preferida quando ele adentrou furioso, sujo de terra e a pegou pelo pescoço, arrancando suas roupas e jogando-a contra parede. Os olhos avermelhados e suor pingando, repetiu o gesto mais uma vez, colocando-a no colo e apalpando-a por todo o corpo. As lágrimas escorriam sem cessar e ela não entendia o porquê. Quanto mais implorava para que ele parasse, mais fortes aquelas mãos percorriam o que parecia não ser dela, tamanha posse ele empregava.

Dali em diante, deixou de se pertencer por completo.

Enquanto abria e fechava os olhos numa tentativa de habituar-se a claridade recém-surgida pelo buraco, repetia mentalmente para que ele ainda não tivesse retornado. Precisava arrumar o quarto e deixá-lo impecável com o pouco de recursos que restara desde a última entrega. A cada trinta dias ele depositava algumas sacolas pelo acanhado elevador de madeira que construíra ano passado, para que não fosse necessário descer as escadas e ser pego de surpresa por alguma tentativa fútil de libertação. O elevador servia também para as escassas refeições que eram entregues com sorte, duas vezes ao dia. Nas sacolas ele a presenteava com lençóis limpos, produtos de limpeza, higiene e velas. Adorava sentir o cheiro de vida que exalava dos lençóis ao substituir os antigos que mais pareciam panos de chão. Deitava-se com o rosto no travesseiro e permanecia por longos minutos assim, torcendo silenciosamente para que a brancura durasse um pouco mais de três dias e não fosse tomada por resquícios de morte.

– É amanhã! – comemorei, olhando de relance o calendário amarelado na parede.

Levantou-se e começou os trabalhos forrando a cama e cobrindo o buraco com Astolfo, o urso gigante de pelúcia que sua mãe a presenteou em algum aniversário perdido em sua memória calejada. Praguejou-se por ter pegado no sono em meio ao choro, gostaria de ter observado um pouco mais o lado de fora antes que ele a punisse. E então pegou o esfregão e limpou as marcas de sangue do dia anterior. Aquele odor já conhecido pairando no ar fazendo-a quase vomitar. Espremeu o mesmo no banheiro, retornando para finalizar a atividade. Limpou a mesa, colocando no balde do elevador o prato de plástico sujo do almoço passado. Bebeu um copo d'água e sentou-se. Estava fraca e suas pernas doíam. Em alguns minutos fariam exatamente vinte e quatro horas desde a última refeição. E, ademais, o remédio para os ferimentos havia acabado. Eles ardiam muito, como se todo o seu corpo estivesse sem pele. Resolveu que a melhor e única opção seria tomar um bom banho para higienizá-los.

Desnuda, colocou no cesto o vestido azul e calcinha ensanguentada que vestia. Estava menstruada e o último protetor havia sido usado dois dias atrás. Ela improvisava rasgando lençóis, o que não era apropriado e sequer funcionava com perfeição. Ligou o chuveiro e mordeu a própria mão para que o grito pudesse soar o mais inaudível possível. Suas coxas queimavam e novas lágrimas misturavam-se junto da água que fluía pelo seu rosto cansado.

– Só mais um pouco. – dizia baixinho, encorajando-se.

Ensaboou-se com delicadeza, para que nenhum som estridente escapasse do seu cativeiro. Contava repetidamente até dez, desejando que como em um passe de mágica aquela dor escorresse pelo ralo. Quando terminou, enxugou-se e recompôs-se novamente. Dessa vez, escolhera o vestido vermelho de bolinhas brancas que sua mãe tanto amava vê-la trajar e encarou o reflexo no espelho ao lado do calendário. Olhos inchados e com olheiras de uma noite inquieta e angustiante. Os cabelos loiros e ralos escorriam pelo ombro desajeitadamente, contornando seu rosto pálido. Desviou o olhar. Não conseguia reconhecer a si mesma desde o dia em que foi obrigada a estar por conta própria. Aquela garotinha ingênua havia ficado para trás, perdida no seu subconsciente. Temia que ela jamais fosse capaz de reaparecer e fazê-la relembrar que os tempos remotos que jugava ser sua definição de felicidade talvez pudessem existir paralelamente junto do sofrimento que vivenciava.

A Garota Que Não Existia - DeckerstarOnde histórias criam vida. Descubra agora