Florescendo: Capítulo 2

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Leo estava na van que levava os alunos para a escola, sacolejando. Passou o caminho todo meio dormindo e meio acordado. Ninguém falou com ele, ele não quis falar com ninguém.
Chegando na escola, desceu da van e caminhou no meio de vários outros alunos, todos falando animados, rindo. Olhou para as paredes do pátio e percebeu lá os muitos cartazes sobre o Grêmio. Suspirou, se sentiu cansado. Mas parou para dar uma olhada nos candidatos. Janaína estava lá. Ela participou de todas as eleições desde o sexto ano, e só perdeu uma, no oitavo ano. Agora estava no segundo ano do ensino médio. Vinicius apareceu de repente:
- E aí, Leo.
Leo se assustou:
- Putz, cara, que susto. Não faz isso de novo.
- Tá.
Se cumprimentaram, tocando as mãos. Vinicius perguntou, brincando:
- Tá secando a foto da Janaína?
- Não, não. Tô olhando as propostas.
Vinicius perguntou, sempre direto:
- Porquê você não se candidata?
Leo suspirou de novo.
- Já te falei, eu não sirvo para isso.
- Porquê não?
- Porquê eu serviria?
Vinicius revirou os olhos.
- Cara, senta aí.
Leo obedeceu, Vinicius se sentou do lado dele.
- Você é um dos adolescentes mais inteligentes que eu conheço, e eu não tô falando só porquê sou seu amigo. E eu também não tô falando de nota. Quem fala com você sabe que você não é só um CDF.
- Tem muita gente inteligente aqui.
- Pois é, incluindo você.
- Cara, deixa isso pra lá.
Vinicius não parecia muito satisfeito.
- Você que sabe.
Se levantou, os dois foram para a aula. Leo praticamente não ouviu o que o professor de geografia dizia. Estava pensando. Alguns professores já tinham dito que ele é inteligente, também. Mas Leo não se achava nada fora do normal. Se gostava de pensar, era em parte por causa da sua mãe. Ela dizia que não se pode viver a esmo, sem entender o que te cerca. Clara. Quando chegasse em casa, ela iria repetir o discurso que Leo ouvia todo ano. Que ele estava perdendo tempo e chances de fazer o diferente. De novo. Ele iria dizer que não queria, Clara diria que é mentira. Iria lembrar as vezes em que os dois conversaram e Leo ia soltando ideias, apontando problemas, sem perceber. Isso deixava Leo cansado. E depois de ouvir a mãe, sabia o que iria acontecer. Iria ficar confuso. Não saberia mais se só tinha medo ou se de fato não conseguia fazer nada.
Depois de algumas aulas, Leo estava caminhando pelo corredor, voltando do banheiro e então se deparou com um menino que conhecia de vista, saindo da sua sala. Ele fechou a porta e disse, como se os dois se conhecessem:
- E aí, mano.
Leo não esperava o cumprimento. Respondeu:
- E aí.
O outro jovem se aproximou um pouco e perguntou:
- E o Grêmio? Vai participar?
- Ah, não. Eu não sirvo pra isso.
- Sério? Eu votava em você.
- Pois é, mas acho que a Janaína cumpre melhor esse papel.
Leo foi observado por alguns segundos e então ouviu:
- Cê que sabe. Falou.
- Falou.
E então cada um seguiu seu caminho. Leo olhava os murais na parede, com as propostas dos candidatos. Sentia que não poderia arcar com aquela responsabilidade. Mais tarde, uma fila se formaria num canto do pátio, rumo à mesa da inspetora, que registraria os candidatos daquele ano. Leo não estaria nela.

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Clara estava sentada no banco do ônibus, às seis e oito da manhã, rumo à casa de uma de suas patroas, Márcia. No caminho, tinha passado na frente da escola de Leo e visto os cartazes anunciando alegremente que as eleições para o Grêmio Estudantil começariam em breve. Suspirou. Imaginava seu filho lá, discursando, criando, botando sua cabeça para trabalhar. Não só pelos outros, mas por ele mesmo. A inércia em que vivia o enchia de arrependimentos, e ver Leo naquele estado fazia Clara sofrer. Sentia que era culpa sua, por não ter energia sobrando para acompanhar o filho, mas não sentia que podia fazer alguma coisa, porquê ela mesma tinha sua força sugada todos os dias pelas horas de ônibus lotados, pelos patrões preconceituosos, por ter que sempre trabalhar sem nunca sair do lugar. O que a confortava eram as amigas, e até alguns meses atrás, o filho, mas ele estava se distanciando.
O que fazer? Porquê as coisas tinham que ser assim?
Clara pretendia tentar reservar um tempo para conversar um pouco com Leo naquele dia, depois que voltasse do trabalho. Desceu do ônibus em uma calçada esburacada, junto com algumas outras pessoas, quase todas com mochilas nas costas. Fazendo parte do fluxo de gente, começou a caminhar, indo para uma parte cada vez mais rica da cidade. As lojas vendiam mais caro e eram mais limpas, os prédios eram mais altos, os carros que vinham na direção contrária custavam todos mais de trinta e cinco mil reais e a arquitetura do lugar não era tão amontoada. Clara parou em outro ponto de ônibus. Tirou da bolsa uma pequena toalha de rosto branca e limpou o suor que começava a se acumular na testa, com as sobrancelhas se fechando sobre os olhos, para protegê-los do sol que refletia nos vidros dos carros e das construções do lugar. Ao redor, as pessoas se moviam e agiam ignorando a existência umas das outras.
Depois de alguns minutos, o ônibus que esperava chegou, barulhento. Clara se levantou, com um certo esforço, seu corpo já não era mais o mesmo e não tinha tempo para coisas como exercícios, e entrou no segundo ônibus do dia, grata por poder desfrutar do ar condicionado e do assento confortável depois de sair do plástico duro e do forno que era a cidade de São Paulo em si em um dia de sol, com o asfalto ardendo violentamente. De vez em quando, se lembrava dos seus primeiros anos no estado de São Paulo, depois de ter saído da Paraíba. Via pela primeira vez aquele mar de gente, e pensava na imensidão de coisas que podiam vir de tantas pessoas. Os anos passaram, das pessoas não vinha nada além de apatia. Clara era alvo de preconceito, o que era sempre um fator dificultante quando ela tentava se aproximar de alguém dali. Foi amargurando, se fechando. Quem põe a cabeça acima da multidão sofre. Os outros têm inveja da sua coragem, ou então te julgam infantil, imaturo, despreparado, não-adulto. Quando se lembrava disso, pensava que o mesmo estava acontecendo com seu filho, na infância tão falante e vibrante, com tanto amor ao dia a dia. Ele também sofria com essa onda que deixava todos iguais. Era isso.
Clara desceu novamente, dessa vez próxima de uma favela. Caminharia mais alguns minutos e então entraria em um belo condomínio, subiria até o décimo primeiro andar pelo elevador e então faria a limpeza no apartamento de Márcia, que morava com seu filho e seu marido. No meio do caminho, acompanhada pelo som dos carros e pelo cheiro quente dos seus escapamentos, Clara sentiu um pisão no pé e uma trombada e, confusa, olhou para frente, vendo um rapaz de fones de ouvido andando a passos largos. O suor na testa, o barulho, horas de ônibus, ter que trabalhar para pessoas como Márcia, tudo isso quase todos os dias e agora vinha esse... rapaz que pisava no seu pé e não se preocupava nem em pedir desculpas. Era só olhar para trás, por um segundo que fosse, e dizer "desculpa, foi sem querer". Ele não tinha um segundo? Ninguém nessa maldita cidade tinha tempo de só olhar para outra pessoa e pedir desculpa? Clara chamou, gritando para se sobressair aos carros e a música provavelmente muito alta que o rapaz estava ouvindo:
- Ei, você de fone.
Ele olhou para trás como quem pergunta "falou comigo?", e então Clara perguntou:
- Não percebeu que pisou no meu pé?
- Eu? Não.
E os dois se encararam em silêncio no meio da calçada, com as pessoas ainda passando ao redor. Essa indiferença, essa imutabilidade na atitude do rapaz irritava Clara muito mais do que o fato de ter levado o pisão e a trombada, simples acidentes. Perguntou, achando que estava a ponto de dar um show no meio da rua:
- E então?
- Desculpa.
- Doeu?
O jovem a olhou pensando que Clara estava sendo violenta sem necessidade, com as sobrancelhas indicando o estranhamento misturado a um toque de desdém. "Essa baixinha velha não pode me dar sermão no meio da rua." Se virou e foi embora. Clara ainda não tinha entendido o desrespeito com que tinha sido tratada, seus pensamentos estavam todos entupidos de raiva. Conforme pensasse no assunto, se sentiria mais irritada. Tentando esquecer o rapaz egocêntrico, continuou indo até a casa de Márcia. O porteiro a viu, ela já não tinha mais que explicar sua presença há muito tempo. Clara abriu o portão destravado e cumprimentou:
- Bom dia, Manuel.
O porteiro, um velhinho muito calmo e gentil, respondeu:
- Bom dia, Clara. Tudo bem?
- Tudo bem. Tô subindo.
- Vai lá.
Poucas palavras, assim como o rapaz apressado, Clara também não tinha tempo. Caminhou pela rua interna do condomínio, arborizada de um lado e com os edifícios do outro. Entrou em um deles, subiu no elevador e então desceu no décimo primeiro andar. Foi até o apartamento de Márcia, entrou. Mais um dia de trabalho que estava só começando.

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Leo estava em casa depois de passar mais um dia pensando, pensando, remoendo suas vontades sem chegar a lugar algum. Imaginava como iria doer quando tivesse que dizer para sua mãe que não tinha feito nada. De novo. Tinha conversado naquele dia com Vinicius, um menino da sua sala que era amigo seu, e ele tinha tentado convencer Leo de que ele era perfeitamente capaz de vencer em qualquer categoria que se candidatasse. Vinicius não conseguiu. Leo varria a casa quando sua mãe chegou, de olhar intenso e distante ao mesmo tempo. Não olhou para nada nem ninguém e então foi tomar um banho. Disse apenas um "oi" vago para Leo, que percebeu que ela deveria estar muito irritada com alguma coisa. Pensou em tentar acalmá-la, mas ficou com medo. Clara, por sua vez, se tranquilizava sozinha, se lembrando de que precisava falar com Leo. Mas era difícil, precisou segurar muita coisa naquele dia. Saiu do banheiro, já vestida. Chamou o filho:
- Leo?
- Oi?
- E o Grêmio?
Clara olhou para a expressão de Leo e não precisou esperar a resposta.
- Eu não tinha falado com você sobre isso?
Depois de uma hesitação, Leo respondeu:
- Falou.
- Você quer tentar, não quer?
- Quero, mas eu não acho que eu consigo fazer direito a coisa toda.
Clara se sentia indignada diante daquela atitude do filho, essa atitude que nunca mudava.
- Mas você não TENTA.
- Mãe, desculpa eu... não sou bom em... nada.
- É, é sim! Mas desse jeito, você nunca vai chegar em lugar nenhum.
E Leo novamente sentia que o seu caminho para o futuro parecia se fechar. Ao longo da sua vida, foi sentindo que não podia só ser sincero consigo mesmo, ou poderia sofrer. E essa realidade o fechou num casulo de medo, assim como tinha fechado Clara num casulo de raiva. A partir desse momento, o futuro era sempre motivo de sofrimento. Não conseguia se ver lá, feliz. E enxergava na mãe um monstro, que não via nada e existia com o objetivo único de deixá-lo triste, sempre triste. Essas palavras traziam a tona todas as outras que já tinha ouvido dela, todas sempre pesadas. Clara, que ainda estava com raiva daquele dia, uma versão ainda pior de todos os outros que vivia, continuou falando:
- Você, como pode ter tantas chances e jogar todas fora?! Você parece que... tem medo de tudo. Nunca consegue fazer nada.
Leo sentiu uma vontade imensa de falar, não podia se calar. Apesar de tudo, ainda acalentava dentro de si, junto com um sonho empoeirado, a sua vontade de mudar e seguir em frente. Respondeu, com fúria e amargor:
- Isso é mentira! Eu consigo. Eu consigo, eu só não... me falta uma coisa. É só isso, eu vou resolver!
- Quando?
Leo despejava meses de frustração e tristeza, que tinha aguentado calado, para não incomodar ninguém, para não parecer fraco, para não se mostrar.
- Não sei. E não sei porquê justo você me faz sentir assim. Quando eu digo pro Vinicius ou pro Josué que eu vou tentar, eles me apoiam. E você me joga pra baixo. Porra! Eu vou conseguir, mas você não acredita em mim! Só acha que eu tô perdido, morto, mas eu não tô!
Clara não aguentou ouvir isso.
- Ah, quer dizer que o Vinicius e o Josué que te ajudam, eu não? Então porquê não vai pra casa deles, ingrato?!
Clara também despejava muito tempo de fúria, nesse dia Márcia tinha revelado facetas ainda mais intensas do seu preconceito, que Clara tentava ignorar para manter o trabalho. Com essas palavras virou uma chave na mente de Leo, que respondeu com cansaço, dizendo mais para si do que para a sua mãe, com uma resolução intensa:
- Acho que eu devia ir mesmo.
Clara só o encarou. Leo já estava com a cabeça em outro estado, depois de um rompante de raiva vem, invariavelmente, a tristeza. Leo, sem dizer nada, se virou e foi pro quarto. Tinha dito que conseguiria algum dia, conseguiria ir em frente, ouvir suas verdadeiras vontades. Mas não sabia como, até essa discussão.
"Acho que eu preciso mesmo ir embora. Preciso ser melhor. Sozinho. Se não, não vale nada."

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