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TUDO NESSE LUGAR  grita dor e melancolia. Sonhos perdidos e realizações inacabadas fazem o solo gemer a cada passo que dou. Essa mistura de diferentes tons de preto se destacando sobre a paisagem miserável do cemitério me faz querer vomitar.

Não olhei para o caixão, até ele estar fechado. Eu não suportaria vê-la dessa forma, morta. Se apenas a certeza de que seu corpo ficará debaixo da terra pelo resto da eternidade já me faz sangrar por dentro a ponto de sentir minhas veias se esvaindo, imagina o que olhar para o seu corpo esverdeado e frio pode fazer comigo.

Me aproximo da caixa de madeira onde ela está trancada e jogo um pouco de terra, apenas para disfarçar meu desprezo por tudo isso.

Minha mãe morreu.

Está morta.

A realidade dessas afirmativas faz minha cabeça girar. Minha visão fica turva a ponto de eu enxergar manchas negras no rosto das pessoas que estão ao redor da cova. Inspiro fundo, tão fundo que posso sentir o cheiro forte da terra alimentada por órgãos humanos. O aroma não é bem um alívio. Meus braços pesam e tenho vontade de sair correndo e fingir que isso tudo é apenas um pesadelo.

O toque de meu pai em minhas costas é gelado e queima minha pele sob o tecido do vestido preto e fúnebre, mas funciona como o despertar do qual eu precisava. Me afasto da cova, com um passo para trás, liberando espaço para que minha irmã jogue terra. Papai estende a mão para mim e a seguro forte. As lágrimas que despontam nos meus olhos são estrelas sombrias e o canto das árvores faz meus ouvidos doerem. Ainda me sinto tonta. Quando ergo o rosto, desviando o olhar do sepulcro no chão, o vento forte rouba algumas de minhas lágrimas e as leva para longe. O céu parece um buraco negro e deixo que ele sugue cada pensamento meu. 

Meu coração é um vácuo impreenchível, como um planeta coberto de gás

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Meu coração é um vácuo impreenchível, como um planeta coberto de gás. Só nada. Pessoas passam por mim e sussurram suas condolências, balanço a cabeça sem parar porque não aguento falar.

Quando finalmente consigo me afastar da multidão, corro para trás de uma árvore. Aposto que é a coisa mais viva nesse lugar. Escorrego até estar sentada sobre o chão, escondo o rosto entre as duas mãos e permito me desfazer como poeira cósmica. Meus ombros tremem e sinto o corpo encolher até a estatura de uma criança ingênua e vulnerável. É exatamente assim que me sinto.

— Ei — uma voz gentil demais, diz perto demais. — Você está bem?

Espio por entre os dedos e encaro a sombra sobre mim. Fungo, limpando o rosto. Sinto minha cabeça pender para trás com um peso anormal. É como se dessem socos na parte de trás dos meus olhos e a dor alcançasse a testa. Toco entre as sobrancelhas, franzindo o rosto.

— Está sentindo dor? — Enfim, decido conhecer o dono da voz.

Forço o olhar para o lado, eles se perdem no verde-floresta dos olhos dele e fios loiros caem perto do meu ombro. Mesmo nesse estado deplorável, me surpreendo ao ver Ryan Matthews, o jogador de futebol mais afamado da minha escola, ajoelhado perto de mim.

— Estou bem, obrigada — digo, reunindo forças para me levantar.

— Olha, bem você não parece. — Olho para ele com a testa franzida de indignação. Sei que devo estar péssima, mas não é isso que se espera ouvir quando você está no velório da sua mãe. Eu estava contando com o mínimo de compreensão.

— Uau, você fala isso para todas as garotas?

Tento me levantar, mas falho. Ryan dá um risinho e faço uma cara feia para ele. Idiota.

— Não foi isso que eu quis dizer — ele diz, sentando ao meu lado. — E você sabe.

— Não, não sei — resmungo, sentindo minha cabeça latejar. Quase tento arrancar os olhos do rosto.

Ele ri, outra vez, com descrença e diz:

— Sinceramente, eu duvido que não saiba o quanto é linda.

Olho para ele surpresa com o elogio gratuito e sou respondida com o mesmo sorriso desleixado de sempre.

— Esse não é um bom momento.

— Para quê? — ele pergunta, ironicamente, enquanto sua cabeça pende para o lado imitando um filhotinho confuso.

— Para isso. — Gesticulo, apontando para nós dois. — Para você vir aqui e me irritar. Eu só quero ficar sozinha.

Ryan não responde. Seus olhos me analisam com o lampejo de algo desconhecido, quase como se pudesse ler a minha alma. Me encolho quando percebo um brilho diferente em suas orbes. Uma aurora boreal escurece as íris melancólicas. Me distraio por tempo demais, nossos lábios fincados no silêncio, os olhos em uma corrida, os corpos imóveis. Estudo como seu cabelo cai na frente do rosto. Os fios são de um loiro escuro, quase castanho, e há mechas mais claras que as outras. Não sei explicar, mas é admirável. Ele é realmente muito bonito.

Sinto como se algo me guiasse para os olhos deles, como se por trás do verde intenso houvesse um segredo, um baú perdido e recheado de mistério. Meus lábios se abrem só para se fecharem de novo.

Um choque de realidade me atinge e percebo que devo parecer uma idiota. Me levanto para voltar à minha família. Ou ao que restou dela.

— Ninguém quer ficar sozinho em um momento desses, Emily — ele diz, me surpreendendo.

— Bem, eu quero.

Ryan se levanta também, ele esconde as mãos atrás das costas e se inclina de um jeito que deixa seu rosto bem perto do meu. Engulo em seco.

— Então, muito prazer! Senhorita Ninguém — ele provoca, estendendo um caderninho verde-musgo, como seus olhos, para mim.

Ignoro a raiva por um segundo, apenas para perguntar:

— O que é isso?

— Um caderno, não consegue ver? — Bufo com sua resposta. Ele é tão irritante.

Viro de costas, respirando fundo. Meu peito se enche com uma fúria prazerosa e por um momento esqueço a dor da perda, mas os socos atrás dos olhos voltam mais fortes. Os passos são lentos demais, porque a fraqueza ainda me abate. Eu só quero ir para casa.

Dedos roçam os meus, antes mesmo de eu me dar conta que Ryan está ao meu lado.

— É para você.

Ele estende o caderno, outra vez.

A confusão faz minhas sobrancelhas quase se fundirem com meus olhos. Para mim? Por que?

Ele insiste, apoiando-se na perna direita.

— Obrigada? — Mal posso evitar a estranheza em minha voz quando recebo o caderninho.

— Nos vemos por aí, Senhorita Ninguém — ele se despede, me fazendo torcer o nariz.

Senhorita Ninguém.

Esse é um péssimo apelido.

Quando volto a andar, Ryan já está muito à minha frente e não tento alcançá-lo. Apenas vou de passo em passo, bem devagar, respirando o ar gélido do cemitério, sabendo que não vou gostar do que me espera no futuro.

 Apenas vou de passo em passo, bem devagar, respirando o ar gélido do cemitério, sabendo que não vou gostar do que me espera no futuro

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