Capítulo 3: Alexander

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Aquela noite poderia ter sido serena, mas ele tinha...Ele tinha que questionar. Estávamos bem, o cobertor nos aproximava e o bruxulear das velas trazia um fim confortável ao calor para se apagarem no frio de nossos sonos. Mas ele levantou e permaneceu sentado à borda da cama observando seu cajado. Quis chamá-lo de volta, mas os ruídos lá fora não nos pareciam mais silenciosos, sua regularidade o incomodava e eu não gostava disso. Ele se ergueu e caminhou pelo quarto com uma irritação contida a passos lentos em direção ao seu cajado próximo a varanda. Chamei-o de volta repetidas vezes, tentei distraí-lo falando de outros assuntos, mas sua atenção estava inteiramente direcionada para o som que vinha lá de fora. Seu rosto tremia enquanto apontava o dedo na direção do barulho e a todo o nosso redor dizendo:

- Esses sons lá fora... Não param, estão abafados, porquê aqui fica longe da praça central, mas eu sei que vêm de lá! Eu posso ouvir, são vozes - Remexi-me na cama incomodado e fui em sua direção em mais uma frustrante tentativa de lhe fazer me ouvir.

- Essa cidade precisa ser digna de virar a capital do império, as reformas vão demorar um pouco.

Toquei em seu peito e quis beijá-lo, mas ele me empurrou para longe.

- FIQUE LONGE DE MIM - gritou me olhando com indignação - Pelos deuses! O que... foi tudo isso? O que está acontecendo lá fora? Essa cidade não é sua! - Essas últimas palavras foram ditas com tamanha ênfase que percebi, então, que não poderia contê-lo.

Sua feição de revolta crescia enquanto ele me encarava bufando e a doçura que o vi demonstrar antes havia sumido completamente.

- Agora é! E você também! - respondi provocante com firmeza e determinação.

Ele me olhou com uma reprovação incorrigível, vestiu seu manto tão rápido quanto o bater da porta, que o fez enquanto apertava seu cajado com toda força em sua mão direita.

Eu apenas havia permanecido parado enquanto ele saía, mas logo me pus de prontidão para partir em sua busca, dessa vez sem qualquer diálogo. Já na praça central o vi consternado processando a cena que via com uma profunda revolta, mas eu... eu me deleitava naquela visão, por mais que não suportasse a ideia de tê-lo ali, vendo o que lhe queria esconder. A praça estava convertida em um pátio de execução, com todas as esfinges revoltosas, aquelas criaturas desprezíveis, sendo derrubadas e aprisionadas por meus soldados com a merecida violência. Outras tantas protestavam desesperadas, sendo afugentadas aos prantos por meus soldados do espaço onde antes Kýon se deitava sob o Sol, o centro da praça, em que agora o velho legislador mantinha a cabeça baixa, com as mãos aprisionadas em tocos de madeira nas suas laterais e posto de joelhos, despido de suas roupas caras, com seus longos cabelos brancos estendidos, forçando a boca fechada, tremulando-a com o ar de um pai que sofre. Suas lágrimas sem esperança caíam no chão e meu general punha-se de prontidão como o próprio carrasco. Observei aquela cena atentamente e sorri.

- VOCÊ ESTÁ MALUCO? - gritou Kýon com um furor que sua face não podia comportar - Seu canalha, cínico e... - Ele andava de um lado para o outro sem dar mais que três passos, atordoado - Uma arma, é para isso que você me quer, quer me usar como uma arma e queria que eu te ensinasse para depois me jogar fora.

- Isso não é verdade, não essa última parte - respondi com um deboche que não carregava falsidade - Nunca quis que você visse essa cena...

- É mesmo? - disse ele com uma ironia cheia de ódio em seu olhar torto para mim - Então... eu era seu troféu?! Ram...Seu doente... como eu pude ser tão burro? - Seus lábios tremeram e com seu olhar caído, Kýon me contestou sem mais palavras, apenas com uma face enojada, o que me doeu profundamente... o seu olhar.

- Você não entenderia... - quis ainda tentar conversar, uma teimosia que sabia que não adiantaria, mas sentia-me inclinado a tentar... mais uma vez.

- O que? Que você tomou o palácio do legislador e o prendeu? Que feriu estas pessoas para tomar controle da minha cidade?

- Pessoas? Essas criaturas humanoides não são mais do que um resquício profano do que nos torna humanos! - gritei sem querer mais amainar o que pensava para ele.

- Sua fé é profana! No que você acredita, afinal? Que pode trazer morte e desgraça em nome de seus desejos?

- Eu acredito no poder dos dragões, nas forças de Chaos, na verdade que você acha irrelevante, mas não pode negar, de que eu fui escolhido por eles para reconstruir seu império, meu império!

- Você é maluco!

A esta altura nossa discussão estava em um ponto que todos que estavam ali se voltavam para nós, as esfinges berrando em apoio a ele e meus soldados as contendo agressivamente.

- Por que você se importa com tudo isso? - respondi explosivo a suas ofensas contra mim - Isso não é nada! Eu posso te dar muito mais! Eles são... irrelevantes! - conclui já desnorteado, mas tinha plena certeza do que falava e a ênfase que dei naquela palavra o abalou profundamente, pude ver em seus olhos.

- Você é desprezível! - disse ele, agora em um tom mais baixo.

Um curto silêncio durou entre nós e todos observaram atônitos. Kýon balançou seu cajado em um círculo imaginário e então o girou junto ao corpo e uma forte ventania tomou conta do lugar. A neblina se dispersava e formava uma espécie de fumaça espiralada, como se estivéssemos no olho de um furacão.

Vou lhe dizer o que você tanto queria saber, mas para nunca mais ouvir! - gritou ele enquanto seu manto roxo balançava furioso em meio a ventania e seus olhos brilhavam com uma energia clara e indefinível - A feitiçaria está na essência das esfinges, nenhum de seus adorados dragões podem controlar isso! Eu não poderia te ensinar, sua ciência não conseguiria compreender, mas eu, EU, posso usá-la!

Seu poder era aterrador, mover-se contra o imponente vento que ele jogava contra nós era quase impossível, parecia que seríamos arremessados a qualquer momento. Todo meu exército estava paralisado e pude ver nos olhos daquelas criaturas profanas raiar esperança de que ele pudesse me vencer! Mas não, não poderia! Aturdido gritei na vã esperança de fazê-lo refletir:

- KÝON!!!

Ao que ele me respondeu sem exitar:

- Você não tem e jamais terá este poder, o meu poder, seu ser imundo! VOCÊ...VOCÊ É IRRELEVANTE!!!

Kýon avançou em minha direção com seu cajado apontado para meu peito e senti que seria dilacerado pelo vento cortante que parecia se voltar quase que inteiramente para mim em rajadas absurdas, quando vi-o parar repentinamente quase ao me atingir, fazendo toda a ventania cessar. Um som excruciante fez-lhe saltar os olhos e voltar-se imediatamente para trás. Meu general havia decapitado o legislador enquanto ameaçava Kýon com olhos de puro ódio.

- O que... o que você fez? - Gaguejei processando a situação para logo, então, tomar de volta as rédeas daquele momento e enforcar Kýon com meu manto. Derrubei-o de joelhos de costas para mim e o sufoquei com todas as minhas forças.

- A-Ale-Alex - ele dizia sem ar, tentando desesperadamente soltar-se enquanto eu o olhava com raiva debatendo-se e o segurando com uma firmeza assassina. Seu rosto ficou roxo e se contraiu, seus lábios ressecaram, suas mãos sequer conseguiam fechar-se para agarrar o longo tecido com que eu lhe enforcava, suas pernas se contorciam e sua voz sufocada cedia junto a seus olhos, que fechavam observando o velho legislador decapitado - Por...fa-a-vorr?!

Senti que poderia matá-lo, mas não suportei aquela ideia. Então, soltei-o. E ele rastejou sem ar, desfalecendo até a poça de sangue onde a cabeça do velho estava. E ali ele perdeu suas últimas forças, desmaiando. Meus soldados inertes se entreolharam e todas aquelas esfinges choraram e cessaram sua revolta, umas retirando-se, outras chorando e outras tantas apenas observando em um torpor angustiante. Meu general olhou em meus olhos e eu cerrei o punho. Aquela noite poderia ter sido maravilhosa, mas mais uma vez perdi tudo. Por quê? Por que ele tinha que questionar?

Mas eu ainda não desisti. Kýon é meu projeto e eu o terei!


*CONTINUA...*

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⏰ Última atualização: Nov 19, 2021 ⏰

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