A canção ecoa com fluidez e uma suavidade que agracia seus ouvidos sensíveis, captando, através deles, como permissivamente era embalada — um abraço caloroso e inebriante. De olhos fechados, ainda sentia alguém acariciar seus cabelos escuros sem cessar, os dedos delgados escorregavam com cuidado entre os fios longos, tão carinhosos e protetores que, por um breve instante, sua mente desejou recordar a quem pertenciam e a razão por trás do gesto, reviver esse solene momento e não somente idealizá-lo em um devaneio qualquer.
Se encolheu, dispersa com a música. Sua parte lógica queria resgatá-la da ilusão, desfazer o estranho encantamento que a envolvia, contudo, o lado lúdico queria permanecer ali, explorar o que aquele mundo onírico tinha a oferecer. O carinho ofertado pela pessoa lhe transmitiam uma familiaridade e, ao mesmo tempo, muita dor — uma tão enraizada dentro de si que chegava ao ponto de ser visceral.
Cerrou as pálpebras, despertando do transe enquanto a melodia prosseguia serenamente.
Lentamente abriu os olhos, ofuscando-se com a luz cegante e apenas uma frase fora verbalizada pelos lábios ressequidos.
— Mamãe?
Mamãe?
A chuva caia sobre a figura de trajes escuros — os olhos encontravam-se fixos na poça de água instável que se formava sob seus pés crescendo sob a interferência externa que a banhava. A imagem refletida não agradou: tudo que enxergava era uma mulher apática com feições endurecidas envolta em manchas rubras que macularam seu rosto e as áreas onde a tez clara ficava exposta, estas se dissolviam com as gotas que percorriam seu corpo exaurido.
Seus músculos reclamavam pela falta de descanso das últimas horas que gastou eliminando a horda de demônios que aterrorizava os subúrbios da cidade e, desde a queda do véu que separava a humanidade dos demônios, esse número aumentou consideravelmente. A população infernal subjugava os frágeis humanos no quesito força e resistência, tanto que muitas vezes acabam se tornando mais um entretenimento para as vis criaturas e seus desejos sádicos. E, talvez, tinha estado no lugar certo na hora certa, sendo capaz de neutralizar os avanços e impedir mais derramamento desnecessário de sangue e evitando baixas.
Tocou o ombro enrijecido, checando suas condições antes de partir. O temporal prosseguia impassível trazendo consigo uma ventania gélida que a fez estremecer sutilmente. Escovou o cabelo molhado para trás e permaneceu ali, imóvel, entregue ao ritmo da tormenta, lavando-se do sangue e da terra. Guardou as armas e retomou seu caminho, movida apenas pela intuição e a boa fé, finalizando suas pendências para voltar a sua solitária rotina errante.
Ao chegar no decadente complexo de apartamentos para o quarto que alugou há poucos dias, retirou peça por peça de suas roupas úmidas e deslizou para o banheiro para tomar um longo banho. Relaxou sob o chuveiro, desembaraçando os cabelos escuros com os dedos e se ensaboando com delicadeza, amenizando um pouco a carga de tensão impregnadas por toda extensão de si. Em seu ritual de troca, penteou os cabelos e vestiu um traje simples para dormir, consistindo em um vestido curto de tom azul marinho. Secou o cabelo utilizando uma invocação básica de vento e se acomodou na cama humilde que compunha o modesto cômodo com suas paredes monotonamente cinzas. As luzes ofuscantes dos letreiros de neon de estabelecimentos vizinhos invadiam o espaço através da persiana velha, entretanto, não a incomodou.
Observou o vermelho piscante se projetar sobre o carpete puído, ponderando sobre sua caçada e que não precisou usar algum feitiço ou suas habilidades para cumprir seu propósito. Estendeu as mãos para frente, avaliando-as com ceticismo e, de acordo com sua intenção, manifestando a aura tímida e a trafegando com um equilibrada técnica pelos dedos. Desenvolveu seu controle com um treinamento árduo e tinha consciência que exigia muito mais que uma varredura básica para alcançar seu real potencial, então teria que se aperfeiçoar mais e com muito mais empenho.
Girou o indicador e uma leve corrente de ar se formou com sua ação, seu domínio elemental fora de grande valia para algumas lutas e quanto mais aprendia da arte da magia mais se sentia conectada.
Era bom ter um trunfo, pensou, mirando o teto.
Enquanto pensava na luta que tivera um tempo antes, lembrou que precisava passar em outra cidade para fazer uma inspeção. Tinha dedicado os últimos meses salvando pessoas e afastando demônios dos grandes centros populacionais, algo que não faria muita diferença a longo prazo, porém a mantinha focada e, sobretudo, mais esgotada a ponto de que dormia mais profundamente e, por consequência, não sonharia.
Se é que poderia chamar aquilo de sonho.
Chacoalhou a cabeça quando as primeiras lembranças dos pesadelos rastejaram para superfície, revivendo o sentimento amargo e desagradável que a engolfavam sempre que se externavam. Empurrou de volta para o esquecimento, bloqueando seu acesso para não assombrá-la novamente. Queria mais que tudo ter uma noite sossegada e longe de traumas.
Você não pode fugir para sempre.
Fitou o teto, planejando o dia seguinte com meticulosidade, se assegurando de não esquecer nenhum detalhe essencial de sua missão. O clarão estrondoso transformou, momentaneamente, a noite em dia, repercutindo em uma vibração instável. A jovem se aprumou e encarou a janela com pouco interesse, assistindo as gotículas que batiam no vidro escorrerem despreocupadamente. Não gostava muito de tempestades, principalmente as violentas, entretanto aproveitou que estava resguardada e decidiu dormir.
Fechou os olhos e abandonou um pouco das diminutas doses de adrenalina que ainda circulavam em seu metabolismo, adormecendo gradativamente.
Despertou em um rompante, aturdida e com os sentidos a mil — seu coração disparava freneticamente e seus membros se agitaram prontos para uma evasão rápida. Voltou-se para o relógio sobre a cômoda que indicava apenas três horas da madrugada e, sem dizer nada, se aprontou para sair, ajustando seus acessórios e armas.
Se olhou no espelho e avaliou seu físico, havia um brilho fraco em sua íris e um semblante apático enfeitando sua face. Nunca fora muito de apresentar abertamente suas emoções através de sua fisionomia, sendo essa uma de suas características predominantes. Arrumou as madeixas com pressa e recolheu seus pertences sem muita cerimônia. Não pretendia ficar mais que poucos dias e sua intuição alertava para se mudar o quanto antes para não ter aborrecimentos futuros. Pagou sua noite final de estádia na recepção e se foi, não muito surpresa ao se deparar com uma besta com o triplo de seu tamanho.
O demônio rugiu em fúria e disparou contra ela que esquivou com graça do ataque impetuoso e descoordenado. Em uma observação fugaz, escolheu o ponto vulnerável da criatura e a derrubou com sua grande metralhadora que evocara carregada com balas imbuídas de magia e potentes o suficiente para que, em poucos tiros, matasse o ser que gritou em agonia. Não seria tola em acreditar que fora um evento aí azar e que se um deles a interceptou deliberadamente, muitos outros iriam se interpor em seu caminho e teria que ser cautelosa para não atrair atenção indesejada... No entanto, nem toda sua perspicaz discrição fora um empecilho para que mais demônios surgissem como pragas famintas.
Sem medo, sacou sua pistola e aplicou o atributo de eletricidade ao projétil, convertendo-o em uma eficiente forma de destruição em massa, pois a medida que atirava, a bala penetrava rasgando alguns inimigos e acertando os mais próximos culminando em uma verdadeira mina explosiva. Desviou dos golpes vorazes, por pouco não acabou pega e partida ao meio com um machado que dava o dobro de seu tamanho. Com movimentos ágeis e precisos, derrubou o restante das bestas cruéis e saltou para uma distância segura, certa de que agora seria um embate mais trabalhoso.
Mirou os novos convidados sobre os ombros e inclinou de leve a cabeça, plácida. Executando ações velozes que previam ligeiramente onde e como eles tentariam feri-la, facilmente esquivou pisando duramente na cabeça de um dos demônios para mantê-lo preso e, por fim, matá-lo.
Virou vagamente e viu que um rapaz a assistia com o olhar curioso.
Não havia sinal de medo.
Dante não se baseava em questões estratégicas para montar sua dinâmica de busca, entretanto, não se opunha a receber orientação. Amadureceu muito desde a queda de Mundus, ainda preservava um pouco do seu jeito rebelde e atitude depreciativa com os inimigos, jogando um pouco com o humor mais ácido, porém não poderia se prover destes por seu objetivo ser uma desconhecida imprevisível. E ali estava ele: encarregado de uma tarefa que, em teoria, não parecia grande coisa em primeira instância. Até suas botas encostarem no deduziu ser um torço retorcido de um demônio de um nível baixo que desaparecia em um rastros de cinzas negras e vermelhas.
Dante não teve opção.
Precisava averiguar com seus próprios olhos do que se tratava — a fonte de tantos rumores. Por mais que a ameaça principal tenha, enfim, sucumbido, não baixou a guarda, sobretudo, pela possibilidade de ter um confronto com outro ser que quisesse ocupar o trono vago de Mundus e conduzir novamente a humanidade a escravidão. Perdeu muito no processo e não queria ter que sacrificar mais do que o necessário, a traição de seu irmão lhe devastou e não se sujeitaria a esse tipo de efeito colateral novamente.
Com alguns informantes simpatizantes da antiga organização de resistência a Ordem, Kat assumiu a investigação coletando dados precisos e, entre essas pesquisas extensas, pôde definir o aspecto da suposta bruxa nômade para identificá-la, sobrava uma estrita missão e tudo que o Nephilim teria que executar de sua parte do plano seria ir atrás dela para se certificar de que lado a mulher estaria.
Os burburinhos citando uma misteriosa mulher que migrava de cidade correu em algumas cidades até chegar Limbo City. De início aparentava ser uma fofoca inofensiva, uma que espalha em uma velocidade alarmante e que pessoas compartilhavam a rodo, nada muito fora dos parâmetros da normalidade, mas um traço recorrente, uma particularidade descrita por muitas testemunhas de seus feitos eram os poderes inumanos e... Seu perfume de jasmim.
E quem diria que a encontraria tão rapidamente.
Ele assistiu seu objetivo, vestida de negro camuflada na escuridão da rua deserta, lidar com a pequena horda de demônios com a destreza e desenvoltura de uma profissional no ramo, se aproximando exclusivamente com a finalização da última das bestas insaciáveis, com ela esmagando-lhe a cabeça com um pisão poderoso.
A bruxa inexpressiva o mirou, revelando sua face por completo.
Dante sacou Ivory e se preparou para abrir fogo — não muito de conversar mediante as circunstâncias. Indolente, ela se emparelhou com ele para demonstrar disposição para revidar, porém ele disparou em algo, um alvo distante de seu campo de visão e que eliminou sem complicações.
Um rugido voraz ecoou pelo silêncio.
A pressão mesclada a brisa criava uma sensação estranha e levava um sabor enferrujado a boca, o desejo de destruir tudo que estivesse no caminho feito uma entidade programada para as mais vis missões se apresentou, quase uma onda de choque energética intensa e atordoante.
— Ei, cuidado!
Surpresa, um grande demônio a agarrou de modo que incapacitasse seus braços, derrubando seu armamento. Raramente se distraía a ponto de ser alvo de uma emboscada tampouco ser capturada igual uma lutadora inexperiente. O Nephilim interceptou a criatura e arrancou seu membro opressor com uma puxada com sua arma em formato de gancho, resgatando a mulher. A feiticeira fora arremessada pelo impulso brusco e o rapaz se prestou a aparar sua queda, contudo, ela prontamente se recompôs em pleno voo e pisou no ombro de Dante para saltar para trás sem dar a chance dele tocá-la.
— Eu te salvo e esse é o agradecimento que recebo? — Ela o encarou com apatia, não enxergando desagrado nele e sim um ar mais jocoso e debochado.
— Não pedi sua ajuda.
— Que seja. — ignorou a neutralidade que emanava dela. — Você está bem?
— Não sei se posso dizer que estou bem considerando que fui capturada por um momento.
— Nem todas se ganham. — Dante gracejou sarcasticamente.
A bruxa pousou no chão e o rastro carmesim formou um obscuro percurso sob seus pés. Não tinha como não se impressionar com a quantidade de demônios abatidos e que só agora notara, quase como se as criaturas estivessem no lugar errado na hora errada — uma combinação certa para a morte. A lua lançava seu brilho prateado sobre a silhueta feminina e viu mais pilhas de cadáveres.
Ao se virar, Dante experimentou uma estranha sensação de, por pouco, fora tragado pela escuridão que existia no olhar da jovem.
E como diziam os rumores: ela possuía, de fato, o floral perfume de jasmim.
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Umbra
FanfictionDesde que se recorda Desirée Delacroix tem buscado por algo que nem ela mesma sabe o que é - vivendo uma longa e árdua procura sem resultados. Vagando sem um rumo fixo e evitando criar laços, seu caminho se cruza com os de Dante e Kat, dois sobreviv...