Eu vivia no Vilarejo onde as crianças eram cuidadas pela comunidade. Havia uma lenda no Vilarejo, que era também nossa Lei Suprema que fazia tudo funcionar: "Não se distancie do Vilarejo. Quem nasce no Vilarejo, morre no Vilarejo". Ninguém nunca nos disse que havia algo ou alguém na floresta ao nosso redor, e talvez fosse justamente por não saber o que temer que obedecíamos sem questionar. Porque tínhamos a liberdade criar qualquer coisa que fosse nosso motivo para obedecer a Lei.
Toda a vida no Vilarejo era regida por essa lei. As pessoas não trabalhavam por recompensa, trabalhavam porque o Vilarejo precisava que elas o fizessem, tinham filhos porque o Vilarejo precisava de trabalhadores. Tudo era sobre o Vilarejo e para este.
Mas as pessoas não nascem sabendo das regras do Vilarejo, então todos iam ao Salão para aprender sobre o Vilarejo, éramos ensinados pelos mais velhos do Vilarejo que eram um tanto severos. Se você conversasse durante a aula, sentiria a fúria do chicote que era exibido ao lado de quem estivesse ensinando no dia. E caso perguntasse algo que não importava como: Existem outros vilarejos? Também seria chicoteado ali, na frente de todos. E não importava muito quem dava aula, você seria chicoteado do mesmo jeito, nós receberíamos a aula do mesmo jeito (nem se percebia se algum professor morria). Olhando agora é bem claro: Nada que não fosse relacionado ao Vilarejo importava, o Vilarejo era nosso mundo e assim deveria ser. Não aprendíamos sobre outros lugares, nem sobre plantas que não existiam a vista de nossos olhos. Porque não importava.
Mas crianças mais crescidas gostam de testar os limites.
Um dia depois da aula fomos até os limites do Vilarejo e decidimos apostar uma corrida até o mais longe que podíamos ir, que para nós naquele momento, era até onde as pernas aguentassem. E nós corremos entre as árvores, nos empurrando numa competição amistosa, estávamos consideravelmente longe e pretendíamos continuar.
Até que se ouviu um barulho no arbusto logo a nossa frente. Foi tão repentino que todos saíram correndo, mas depois correr um pouco, eu decidi voltar. E voltei porque me lembrei que aquele arbusto tinha um cheiro que eu nunca tinha sentido antes. Lá eu estava de frente ao arbusto, sozinha. Mexendo no arbusto eu encontrei uma garotinha, nada de incomum, ela sorria para mim. Uma criança pequena e magra, maltrapilha, provavelmente perdida ou só não tinha para onde ir.
Ela cheirava tão bem, era tão convidativo... Mesmo que ela fosse exatamente igual qualquer criança do vilarejo, eu tive uma revelação quando estava olhando no fundo dos olhos dela: Finalmente eu havia entendido para que minhas garras eram feitas, e para que meus dentes afiados serviam, e eu iria usá-los com primor.
Depois disso me senti entorpecida e apenas acordei do transe quando a ouvi gritar momentos antes de eu arrancar e engolir um pedaço do seu pescoço, eu a devorei até que sobresse apenas osso. Mesmo que fosse magra ainda tinha carne o suficiente para mim. Quando terminei voltei lentamente para o Vilarejo, eu percebi que havia escurecido, e sempre tem uma contagem quando escurece.
Eles esperavam por mim.
Quando eu cheguei ainda estava muito confusa, então não resisti quando os guardas me levaram. Enquanto era arrastada pelo Vilarejo eu percebi o que tinha feito, e me sentia realmente mal. Era como se eu tivesse devorado uma irmã, só queria vomitar. Eles não fizeram nenhuma pergunta, nem pareciam espantados com a minha boca e as minhas roupas ensopadas de sangue.
Fui rapidamente condenada por "afastar do Vilarejo". Eles não queriam saber... Ficou claro naquele momento: Nada de fora do Vilarejo é importante e quem nasce no Vilarejo, morre no Vilarejo. Eu já não sentia tanta culpa, ela não era do Vilarejo, ela não importava. O que importava era que eu ia morrer e nossa Lei Suprema é nossa maior proteção.
Na manhã seguinte eu obedientemente caminhei em direção ao meu destino. Pouco antes de o machado cair sobre mim, eu vi um garotinho que parecia confuso. Como eu quando assisti uma execução pela primeira vez. Peço que entenda, como uma cidadã do Vilarejo eu tinha de proteger as crianças.
Então eu disse minhas últimas palavras: Não se distancie do Vilarejo.
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O Vilarejo
Short StoryUm grupo de jovens decide ignorar a única e suprema lei do Vilarejo "Nunca se distancie". E tal aventura desencadeia consequências fatais para um deles.