Capítulo I

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Um estrondo. Silêncio. Outro estrondo. Uma pausa... Acordo sobressaltado, em pânico. Os meus calções e t-shirt, ambos pretos, que serviam como pijama estavam encharcados em suor. Atirei a camisola para um canto do quarto. O meu corpo magro e esbranquiçado arrepiou-se de imediato. Levantei-me a custo, segurando nos elásticos dos calções, que eram muito mais largos do que eu. Atravessei todo o meu quarto, fazendo a porta velha de madeira chiar. O barulhinho ecoou pela casa. Já na casa de banho analisei ao pormenor a minha cara. As olheiras davam-me pelos joelhos, já para não falar do meu cabelo preto a pingar como uma torneira. Despi-me e tomei um banho bem quente. Envolvi-me na toalha e desloquei-me a custo para o meu quarto. As tábuas do estreito corredor que ligavam toda a casa rangiam alto, num arranhar estranho, como se alguém as estivesse a serrar debaixo dos meus pés. O meu quarto era o mais pequeno da casa. As paredes estavam pintadas com um tom acinzentado. Vesti as primeiras peças de roupa que me apareceram. Não tinha muito por onde escolher na verdade. O ambiente do meu quarto era tenebroso como se estivesse uma permanente nuvem chuvosa dentro dele. Pisei novamente o chão do corredor, agora em direção à cozinha. Olhei para o relógio, que parecia flutuar. 9:47. Estava mais do que atrasado para as aulas, mas sinceramente não queria saber. Eu era bom aluno, mas não era muito pontual. Todos os dias recebia sermões da diretora de turma visto a minha mãe nunca ter ido a uma reunião de pais. Comi um iogurte, atirando a embalagem agora vazia para o lixo enquanto colocava uma banana no bolço para a viagem.

A porta principal vermelha não rangeu, surpreendentemente. Havia sempre uma primeira vez para tudo. Bati com força o pequeno portão enferrujado outrora verde, fazendo saltar lascas de ferrugem. O caminho para a escola foi silencioso e sinceramente era tudo o que eu queria. Cheguei à porta da sala quando a segunda aula da manhã estava na iminência de começar. Sentei-me no meu lugar, ao fundo da sala. O professor de ainda não tinha chegado, o que para mim era um alívio. Menos um sermão era qualquer coisa fenomenal. Não pronunciei uma palavra até à hora de almoço, ao contrário da minha turma que não se calava um segundo.

Arrastei-me pelo corredor azulado cheio de gente de pouco interesse até à cantina. O cheiro nauseabundo de suor em conjunto com a comida praticamente venenosa que davam aos alunos enojou-me por completo. Sentei-me sozinho, perto de uma das grandes janelas que iluminavam aquela sala. Nas mesas ao meu lado ouviam-se gargalhadas, pessoas felizes, sem problemas. Já a minha mesa parecia o meu quarto, sombria, tenebrosa. Virei a minha atenção para o prato cheio de uma comida amarelada que se encontrava na minha frente. Obriguei o meu corpo a comer, apesar da minha enorme vontade de vomitar. A maioria das pessoas deviam achar que eu era surdo ou mudo e isso confortava-me, divagou a minha mente enquanto comia esta iguaria. As aulas da parte da tarde foram a literal definição de seca, secantes, o quer que queiram chamar. Às 17.15 já me dirigia para casa, mas a parte mais difícil do dia ainda estava por chegar. Cheguei a casa e esta estava como eu a tinha deixado, mas não iria estar assim por muito tempo.

Por volta das 2 da manhã, o ranger da porta de entrada ecoa pela casa e em seguida um barulho, como se alguém tivesse caído. Levantei-me e caminhei para o hall. No chão deste estava a minha mãe a tremer e a balbuciar. Drogada, outra vez. Já era habitual. Ajudei-a a arrastar se até à banheira, onde vomitou por o que pareceram horas. Segurei o seu longo cabelo castanho. De repente a minha mente escapou. Costumava brincar com o seu cabelo quando era pequeno, lembro-me que era relaxante. Ela ria-se, tinha um sorriso tão bonito. Volto à realidade por causa do cheiro nauseabundo. A cara da minha mãe expressava agonia enquanto vomitava. A sua boca outrora com dentes estava desdentada, esverdeada. A sua pele outrora lisa e branca estava agora repleta de picadas de agulhas. Tinha pena da minha mãe, mas não podia fazer nada para a ajudar. Não tínhamos dinheiro para uma clínica, não a poderia levar a um hospital, porque sem seguro de saúde iria pagar a dívida o resto da minha vida ou então penhoravam a casa, o que era bastante pior. Não havia solução. Depois de acabar, lavei com o chuveiro o vómito e deitei a minha mãe. Adormeci perto das 5 da manhã enquanto pensava na minha horrível vida. No dia seguinte cheguei atrasado à escola, nada de novo. Entrei na sala e ao fundo, na minha mesa estava sentado um rapaz que eu nunca tinha visto antes. Devia ser novo, afinal o 12º ano tinha acabado de começar. Os meus olhos percorreram o seu corpo analisando todo o seu corpo, enquanto as minhas pernas levavam me para o meu lugar. Éramos praticamente o oposto. Eu com as minhas roupas engelhadas, casaco preto até aos pés, botas da mesma cor, cabelo preto encaracolado, olheiras gigantes, olhos verdes pele sardenta e ele com roupas caras, perfeitamente passadas a ferro, nariz fino, mas não muito grande com um aparentemente bom horário de sono, com uma pele que envejava e com cabelo castanho-claro perfeitamente cuidado. Não nos iríamos dar bem. Sentei-me a custo, deixando a mochila em cima da mesa. Olhei de relance e vi a sua cara de surpresa. Não devia estar à espera de eu ser o seu colega de mesa. Puxei a mochila e deitei a cabeça em cima desta. Precisava de dormir e na aula de Física não se fazia nada, por isso dormir era uma boa opção. Mal fechei os olhos ouço um "Hey" muito baixo. Ignorei. Voltei a ouvi-lo agora mais alto. Voltei a ignorar. Não deveria ser para mim, nunca era para mim. Ouvi uma terceira vez aquele som e a seguir um toque no ombro esquerdo. Rodei a cabeça a custo para esse lado, abri os olhos e levantei a sobrancelha esquerda em sinal de interrogação. "Não vais estar atento à aula?", perguntou-me o menino perfeito sentado à minha beira. Abanei a cabeça em negação enquanto fechava novamente os olhos. Estava demasiado cansado para falar.

Acordei com o soar da campainha seguido do arrastar das cadeiras. Com isto, levantei-me também, caminhando lentamente pela sala já vazia. As minhas botas chiavam a cada passo que dava, uma melodia irritante para os meus ouvidos. Bati a porta da sala e agora no corredor repleto, esgueirei-me entre os professores que odiavam o seu trabalho, os desportistas que queriam fazer sexo com tudo o que tivesse uma vagina, as raparigas populares que só falavam de rapazes, os empregados ao quais o governo explorava e os restantes que aspiravam um futuro irreal, pois na verdade mais de metade ia trabalhar por um ordenado mínimo para o resto da vida, ter filhos aos 20 e careca aos 30.

Entrei na casa de banho dirigindo-me para os lavatórios. A água gelada arrepiou-me, mas fez o seu trabalho de me despertar. No momento em que me dirigia para secar a cara, a porta para o corredor abre-se, dando de caras com o rapaz que se tinha sentado ao meu lado em Física. Com a cara ainda a escorrer, apercebi-me de como ele era atrativo. O cabelo rebelde era como uma antítese do que se passava no resto do corpo, a roupa imaculada ajustava-se perfeitamente ao seu corpo musculado. Imobilizado diante deste, a sua gargalhada trouxe-me de volta à realidade. "Desculpa...", proferi quando me apercebi da minha figura. "Não te preocupes", disse o rapaz enquanto tirava algo do bolso de traseiro das calças. "Não sou nenhum stalker, vi que deixaste o cartão da escola em cima da mesa e decidi seguir-te pra to dar...ok, agora que penso talvez seja um pouco stalker." O rapaz riu-se enquanto proferia estas últimas palavras. O seu sorriso era encantador, os seus dentes reluziam até com a luz baça da casa de banho. "Pelo menos o importantíssimo cartão da escola não foi perdido.", disse num tom irónico. Já em direção à porta, tirei o cartão das suas mãos. Senti o seu sorriso a desaparecer enquanto me afastava. Já com a porta aberta ouço "Btw, chamo-me Simon." Olá Simon, disse para eu mesmo, já no corredor repleto de gente.

Simon. Aquele nome a repetir-se vezes sem conta na minha cabeça tornou o caminho para casa mais cansativo do que o normal. Olhei para o céu numa tentativa de me distrair. A cor alaranjada do pôr do sol enchia por completo o céu da cidade, o que me deixou pensativo e também invejoso. O sol vivia em todo lado ao mesmo tempo, uma espécie de Deus. Conseguia ver todas as pessoas daquela cidade, consegui-me ver todos os dias a passar pelo inferno na Terra, conseguia ver a minha mãe a drogar-se, todos os dias num canto diferente desta cidade, conseguia ver a vida perfeita de Simon, o rapaz perfeito, com a vida perfeita, com a família perfeita. Este Deus omnipresente, que tudo vê, mas como todos os Deuses, tinha pouca ou nenhuma influência nas nossas vidas. Na verdade olhar para o céu só me stressou mais, fazendo exatamente o oposto do que eu queria... tirar Simon da minha mente. Porém como um círculo vicioso, aquele nome volta para minha mente, ficando nela a noite toda.

Revirei-me na cama de um lado para o outro, suor escorria pelo meu corpo. Olhos postos no teto rachado e depois no pequeno relógio que se encontrava pousado na cómoda. 3:42. Cedo, pensei enquanto me levantava em direção à casa de banho. Água fria tinha efeitos milagrosos na minha pessoa. O som da água a escorrer pela pia ecoava pela casa, o som do silêncio líquido. Uma calma irreal indicava a bonança antes da tempestade que se me esperava.

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