Capítulo 2

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Acordei com o bater da chuva no vidro. A janela estremecia com a fortes rajadas de vento da intempérie que se fazia sentir lá fora. A casa assobiava com este vento tenebroso e eu ainda debaixo das mantas pensava que horas seriam. Entretanto, a esforço tentava abrir os olhos. Com isto, tocou o som muito pouco prazeroso da campainha. Espreitei pelas portadas semicerradas, avistando entre estas uma cara não familiar. Ao analisar melhor os arredores, apercebi-me de um carro estacionado no outro lado da rua. Num sticker praticamente apagado conseguiam-se ler com esforço as letras CPCJ. Escondi-me, mal processei esta informação. Merda, merda, merda...A proteção de menores estava à porta. Esgueirei-me pelo corredor até ao quarto da minha mãe. Vazio, como sempre. O cheiro a mofo anunciava que aquele quarto não era usado há um bom tempo. Atravessei a sala, em direção à cozinha à procura da minha mãe, mas sem sorte. A campainha que ainda ecoava pela casa, porém de mim nunca teria resposta. Eu amava a minha mãe, apesar de ela estar quase 100% do tempo ausente. Não a encontrando em lugar algum, decidi ir-me embora, indo pela primeira vez com vontade para a escola, ou melhor, uma vontade forçada pelo agente da proteção de menores que ainda insistia na campainha. Vesti-me rapidamente, e sai pela porta da cozinha para o pequeno pátio nas traseiras. Coloquei a mochila às costas e o carapuço na cabeça, devido à chuva que ainda se fazia sentir, enquanto saia pela porta da cozinha. Daqui, era só saltar a pequena cerca que separava as traseiras da casa da rua e voilá, CPCJ evitada. Corri por alguns minutos, dando alguma distância de casa. As solas das minhas velhas botas chiavam ao tocarem no chão de pedra e eu, pensava quem é que tinha denunciado a minha mãe à proteção de menores. Provavelmente a minha escola, ou melhor, a diretora de turma. Ela era, para todos os efeitos, uma puta.

Deparei-me com uma escola vazia, corredores vazios. No chão, só o rio de água deixado pela minha roupa encharcada é que me acompanhava. Ao fundo do corredor, sobre os vários troféus da escola, um relógio marcava as horas. 8:21. Há muito tempo que não chegava antes da primeira aula da manhã... um milagre ou não. Agora na casa de banho, tentava secar, sem grande efeito, a minha roupa. O aquecedor de mãos fazia barulho e pouco vento. Frustrado, tirei o casaco, pondo-o na pia. Espremi-o, também sem grande efeito. Sentia a minha cabeça a andar as rodas, talvez fosse do frio, do cansaço ou então um início de pneumonia. Lá fora, o corredor já se tornava habitado. As conversas de fundo, os gritinhos, o bater metálico dos cacifos anunciavam o início das aulas. Com isto e ainda a minha pessoa neste estado sem definição, abre-se a porta da casa de banho. Nela, especado encontrava-se Simon, totalmente aperaltado, sem uma gota de chuva. "Oh meu deus, estás bem?", perguntou, enquanto observava o meu estado, digamos deplorável. "Sim, est..." As minhas palavras foram interrompidas por um espirro abafado que me fez arrepiar. " Não pareces. Estás todo molhado e a tremer." De facto, as minhas mãos geladas tremiam e o ranger dos meus dentes soava como uma sinfonia desafinada. "Estou bem" disse no que pensava ser um tom afirmativo enquanto vestia o casaco. Dirigi-me para a porta, tentando afastar Simon, mas este não se mexeu por um milímetro. Tentei empurrá-lo novamente, mas nada. O seu corpo estava como colado ao chão. "Não te vou deixar andar por aí assim, ainda ficas doente" proferiu, o menino na minha frente. Agora, a não mais do que dois passos dele, podia sentir o cheiro do seu perfume. Tinha um toque floral, mas nada de muito intenso. Era suave, tal como a sua voz. "Por favor, deixa-me passar. Tenho de ir para a aula.", atirei eu. Na verdade, não queria ir para a aula, mas estar ali deixava-me nervoso e ir embora era o melhor. A campainha tocou, marcando o início da aula. Simon, olhava-me com um ar suspeito. Parecia avaliar alguma decisão na sua cabeça, até que por fim, saiu da minha frente. A passo rápido saí da casa de banho e corri corredor fora em direção à aula de português. "Porque que ele se haveria de preocupar comigo?", a minha cabeça questionava-se, enquanto pousava a mochila em cima da secretária. A manhã de aulas foi tranquila, apesar do frio que sentia aumentar a cada segundo que passava.

Às 13:30, o toque anunciava o fim das aulas, pelo menos para mim. Tarde livre era tudo o que eu mais ansiava, mas o problema persistia. O tempo chuvoso não dava tréguas a ninguém, contudo, apesar de ainda estar totalmente molhado, decidi ir a pé para casa. Não havia dinheiro para o autocarro, quanto mais para um uber. O parque de estacionamento da escola estava repleto de carros. Uns verdes, uns azuis, a maioria brancos ou cinzentos. Cinzentos como o tempo e brancos como as minhas mãos. Os tremores continuavam quando percorria o caminho até casa a custo. O passeio irregular dificultava esta ação difícil que é caminhar e o constante barulho do trânsito fazia a minha cabeça latejar. De certeza que no dia seguinte ia estar doente, esse facto era adquirido. Apesar da chuva ter cessado, o vento gelado cortava a minha pele e gelava a minha camisola de lã colada ao corpo. Abriguei-me deste, numa paragem de autocarro. A cobertura desta quase caixa de fósforos parecia levantar voo com as rajadas cada vez mais fortes. O pequeno banco metálico rangeu com o pesar do meu corpo. Suspirei, enquanto olhava para o nada. Poucos segundos depois, pára um carro na minha frente. Vermelho escuro, vidros fumados, impossível de identificar o condutor de tal veículo. Mantive-me sereno, mas cauteloso. Comecei a levantar-me, ir embora de fininho, como se costuma dizer. Já com a mochila às costas, o vidro do lado do passageiro abre-se. Lá dentro, no lugar do condutor está, nem mais nem menos, Simon. Rico, pensei, apesar do meu reportório de carros não ser grande, entendia que era de certeza um carro caro. "Precisas de boleia?" gritou o rapaz. Apesar da minha mente não querer aceitar, o meu corpo implorava por aquela boleia. Acenei com a cabeça, concordando com a afirmação de Simon. "Entra!" exclamou, mas já me tinha feito de convidado, pois nesse momento já abria a porta, sentando-me nos confortáveis e beges bancos. Dentro do carro, o calor que se fazia sentir era reconfortante. "Obrigada", disse enquanto esfregava as mãos uma na outra, na frente da sofagem. "De nada... amhhh...Na verdade, nunca me disseste o teu nome", proferiu Simon, com uma expressão confusa. "Isak", disse rapidamente, tentando disfarçar o embaraço que sentia. O carro arrancou calmamente e com isto Simon, com os olhos focados na estrada, disse "Onde é que vives?" "Rua do Brasil, é a segunda casa à direita." disse confiante. Tinha perdido as vezes que palmilhei aquela rua. "Caminhaste isto tudo de manhã?", perguntou Simon, ansioso pela resposta. "Hoje e todos os dias desde os 6 anos." Silêncio, provavelmente não estava à espera daquela confissão e sinceramente nem eu, mas senti a necessidade de dizer aquilo. Simon inspirava uma certa confiança apesar de não o conhecer de lado nenhum. "Tanto quanto sei, podes me raptar" disse, num tom de brincadeira. "Talvez faça isso, quem sabe" Simon disse com um sorriso no canto da boca. Sorri também. No fundo, seria bom sair daqui, deste sítio deprimente. Ir para algum sítio longe, sem preocupações. Assim, sem me aperceber, entravamos agora na famosa Rua do Brasil. A placa que assinalava a rua, estava pendida e grafitada. Desde sempre me lembro dela assim. As casas ao longo do tempo foram mudando, tanto elas como as pessoas que lá moravam. A minha era a única permanente. Sem cor, sem alma, a desvanecer no tempo, um pouco como eu. Antes de avistar a minha casa, avistei o carro da CPCJ. "Merda...", disse, não conseguindo conter a asneira. "Não pares Simon, por favor" exclamei. Simon, olhou-me confuso, mas aceitou o meu pedido. Ao passar à frente da porta, lá estava o mesmo agente de manhã. Era persistente, mas eu era mais e estava destinado a evitá-lo o resto da minha vida se fosse preciso. "Desculpa Simon, mas não posso ir para casa. Deixa-me aqui" disse, após estarmos suficientemente longe de casa, num tom anasalado, enquanto arrastava a mochila para cima do banco. "Aqui onde?", Simon indagou, acrescentando "Daqui a duas horas está de noite. Não te vou deixar sozinho por aí...É perigoso." As suas mãos apertavam o volante com ainda mais firmeza do que andas, sendo possível ver bíceps dos seus braços, mesmo estes estando debaixo da camisola rubicunda. "Eu fico bem", atirei. "Vou te levar para minha casa", atirou de volta, ignorando as minhas palavras. Fechei os olhos...o meu cérebro tinha desistido de falar. Aceitei mentalmente que ia, quer quisesse quer não, para a casa de Simon, o rapaz mistério.   

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