Capítulo 4

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Fabrício

Ouvi a porta da frente sendo aberta e aproveitei que Cecília tinha pegado no sono, para depositar o livro que estava lendo na mesa de cabeceira e caminhar para fora do seu quarto.

Logo desci as escadas e lá estava Lucília, que havia ido à cidade fazer algumas compras. Eu não gostava muito quando ela ia na cidade que ela voltava com várias notícias e eu não queria saber de nenhuma, mas era obrigado a ouvir, pois ela sentia necessidade de me informar sobre tudo que acontecia.

— Menino, ainda bem que te encontrei, preciso te falar algo.

Revirei meus olhos e esperei que ela começasse com a fofoca que estava disposta a me contar.

— Não precisa ficar com essa expressão de desdém. O que vou te falar, vai fazer com que você mude essa carinha logo.

Aproveitei que não teria chance de escapar de sua conversa e a ajudei com as sacolas, caminhando em direção à dispensa, para guardar as coisas.

— O que foi? — sussurrei, mas alto o suficiente para que Lucília escutasse.

— Achei alguém que pode vir dar aulas para Cecília aqui em casa.

Olhei por cima do meu ombro, em direção à mulher que parecia empolgada demais para meu gosto.

— Como assim? — Voltei a dizer, pois estava interessado no que ela estava dizendo.

— Pelo que entendi, tem uma noviça nova na cidade, que está com um propósito de alfabetizar crianças, e eu pensei imediatamente nela, para vir aqui dar aula para nossa pequena.

Deixei as sacolas no chão e voltei em direção a Lucília.

— Você sabe o que acho de estranhos em nossa casa.

Tentei falar com calma, mas na verdade, eu estava explodindo por dentro, querendo gritar e talvez até quebrar algumas coisas.

— A Cecília precisa ser educada, precisa estudar e precisa viver, Fabrício.

— Mas, Lucília...

— Não tem nada de "mas" — esbravejou, como em alguns dias, quando eu conseguia tirá-la do sério. — A Cecília é uma criança presa dentro de casa. Não estou trazendo nenhum monstro para dentro de casa. É uma freira, que não fará maldade alguma com a menina e sim ensiná-la a escrever, a ler e tudo mais.

Levei dois dedos aos meus olhos, para tentar manter a calma com o resto de coisas que estavam acontecendo.

— Eu posso até concordar com você, mas se algo der errado, saiba que irei te culpar.

— Pode fazer isso, Fabrício. Mas quando perceber que nada de errado vai acontecer, eu aceito seu pedido de desculpas.

Sem muita paciência, saí da cozinha e caminhei para fora da casa. Precisava de ar fresco, e logo a chuva que ameaçou cair o dia todo, desceu pelas nuvens e começou a me molhar.

Talvez a água fria me deixasse mais tranquilo e fizesse com que eu pensasse com mais clareza.

Eu sabia muito bem que minha filha precisava de diversas coisas que eu não conseguia proporcionar-lhe, mas queria cuidar dela, para que não a perdesse. Não sabia mais o que fazer para parar com a minha paranoia, no entanto sabia que era o melhor para ela.

Eu queria manter minha menina segura e não sabia como fazer algo diferente. Tinha que deixar de ser menos protetor, mas também não sabia o que fazer para deixar de ser daquela maneira.

Infelizmente teriam que me aceitar daquele jeito, ainda mais que eu nem me aproximava de ninguém para não ser julgado e mesmo assim, sabia que as pessoas da cidade, eram cheias de piadinhas relacionadas a mim. Eu não lhes desejava o que sentia todos os dias e nem pelas tristezas que havia passado, porque daquela maneira eu seria só mais um idiota como elas.

Sofri demais para ser julgado por todos por esse motivo. Elas não sabiam como meu coração sangrava todos os dias que eu acordava e percebia que a minha vida era uma merda.

O único resquício de felicidade que eu sentia, era quando a minha pequena Cecília chamava por meu nome. Ou quando ela soltava uma gargalhada, quando me perguntava alguma coisa, com sua voz infantil e as palavras trocadas.

Ninguém sabia o que eu sentia naqueles momentos e pelo jeito nem ficariam sabendo, já que não estava com a mínima vontade de me abrir para ninguém. Só queria ser o poço de solidão em que eu sempre me encontrava.

Olhei para o horizonte e só conseguia ver escuridão e gotas de água caindo pelo céu. A vida era muito difícil e as pessoas não entendiam aquilo, já que elas nunca haviam passado por várias tragédias daquela maneira.

Deixei de me lamentar e voltei para dentro de casa, evitando os possíveis lugares que podia encontrar com Lucília. Eu permitiria que uma estranha entrasse em minha casa, mas não iria aceitar qualquer tipo de julgamento, quando a pessoa se sentisse no direito de falar alguma merda para mim.

Subi as escadas, caminhei para o meu quarto e em seguida retirei a roupa molhada, para não adoecer, se não as coisas ficariam ainda mais complicadas. Antes de entrar no banheiro para tomar uma ducha rápida, com água morna e esquentar meu corpo, parei em frente ao espelho e olhei o reflexo do homem que era.

Um dia fui uma pessoa bem-sucedida, mas hoje eu só parecia a capa de alguém destruído pela vida.

Vi a cicatriz que tinha em meu peito direito e lembrei-me de quando perdi Elena. Naquele dia, desesperado para chegar até minha mulher, acabei me cortando em um pedaço de ferro que estava solto no hospital em que ela estava e a porra daquela cicatriz me lembraria pelo resto da vida o dia da morte do meu grande amor.

Deixei de encarar aquele pequeno corte e caminhei para o banheiro. Era melhor deixar minha alma se limpar, por alguns segundos, para que eu tentasse pegar no sono e não me lembrasse das tragédias que eu vivi e ainda passavam pela minha mente constantemente.

Fechei meus olhos embaixo da água quente e esqueci-me do resto do mundo por alguns segundos. Saí do lugar alguns minutos depois, sequei-me e caí daquela forma na cama.

Era melhor dormir...

Dormir e esquecer-me de tudo...

Uma pena que os pesadelos em sua maioria me assombravam como nunca.

Pelo jeito eu nunca teria a paz que eu desejava, nunca seria feliz novamente.

Nunca seria um homem completo.

Seria somente a Fera solitária que todos diziam na cidade.

A Noviça e a Fera - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora