Capítulo 1

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Fabrício

O vento batia em meu rosto e eu sentia como se fossem adagas que cortavam minha pele. Em alguns momentos eu até pensava que podia ser real, que ao menos algo eu tinha que sentir naquele mundo injusto. No entanto, nunca era real e eu sempre voltava para a porra da solidão em que vivia.

Sabia que eu mesmo tinha caçado com as minhas próprias mãos aquele destino, mas não esperava sofrer tanto com aquilo, não esperava ter meu coração sangrando todos os dias, não esperava porra nenhuma daquilo. Olhei a água bater nas pedras que ficavam longe o suficiente para que acontecesse um acidente, caso eu fosse um pouco mais solitário, e não desse sequer um resto de importância para a vida.

Só que o meu ponto de luz, evitava que eu cometesse qualquer besteira, a minha pequena Cecília, que provavelmente dormia tranquila em seu quarto, todo preparado para uma menina doce — como minha filha era —, tinha me salvado.

Ela tinha apenas quatro anos e talvez eu tivesse medo o suficiente de deixá-la viver uma vida em paz. Não deixava que socializasse muito com outras pessoas, mas era por ser traumatizado ao ponto de não querer perdê-la também.

Como aconteceu com Elena...

Lembro que tínhamos sonhos, éramos loucos para ter um bebê e quando Cecília nasceu eu me senti o homem mais feliz do mundo. Só que dois anos depois, em uma noite chuvosa, Elena tinha ido ao hospital em que trabalhava, e na volta acabou perdendo o controle sobre o seu carro e caiu por um desfiladeiro.

Aquelas lembranças me machucavam mais do que eu poderia pensar, então eu sempre tentava desviar daqueles pensamentos que só me chateavam e me deixavam ainda mais perdido no meio daquela vida solitária.

Cecília e eu ficamos sozinhos no mundo e se não fosse por Lucília — minha governanta —, eu não conseguiria continuar a viver, já que tinha perdido o amor da minha vida, só que a mulher que eu considerava como mãe, mostrou-me que eu tinha que cuidar da minha pequena e que ela precisaria de mim naquele momento.

E era por isso que até hoje eu tentava me manter firme e forte para não abandonar minha menina.

Balancei minha cabeça para deixar os pensamentos tristonhos saírem da minha mente e me afastei do precipício que eu encarava como se fosse uma ponta de escape.

Eu morava no alto da colina de São Leopoldo, uma cidade no interior do Rio de Janeiro, que não era muito conhecida pela mídia e muito menos por turistas, no entanto, quem morava na cidade nunca saía daqui, já que era um lugar acolhedor e que todos amavam.

Até eu gostava de morar ali, mesmo tendo me isolado de tudo e fazendo com que quem se aproximasse de mim, sentisse certo tipo de medo, para que me repudiassem o suficiente e não tentassem fazer amizades.

Caminhei em direção ao casarão que morava e olhei na direção do portão de grades que levava à estrada que ia até o centro da cidade.

As luzes do centro iluminavam um pouco da escuridão da noite, no entanto, nem aquilo fazia com que eu tivesse vontade de me mover para o meio daquela multidão que não merecia minha atenção.

Quando Elena morreu, muitos tentaram prestar solidariedade, só que eu não queria nada que viesse de ninguém. Eu queria minha esposa de volta, já que não podia ter, então não estava com nenhuma vontade de perder o meu tempo de luto sendo cortês com curiosos e fofoqueiros.

Assim que abri a porta de madeira, Lucília surgiu no alto das escadas e me olhou com um pouco de pena, mas que ela logo fez desaparecer, já que sabia que eu odiava aquilo.

— Estava lá fora nesse frio, menino?

Assenti, mas não respondi nada. Realmente estava frio, já que o inverno resolveu ser um pouco rigoroso esse ano. Porém eu não me importava com mais nada, chovesse, ou fizesse sol. Só queria voltar no tempo, mas como também não podia, então era melhor viver na minha solidão em paz.

— Quer que eu prepare um prato de comida para você? — Lucília insistiu, pois eu já havia recusado mais cedo o jantar.

— Não!

Sabia que era um pouco seco com ela, mas não sabia mais como tratar as pessoas bem, já que não me socializava com ninguém além de Cecília e Lucília.

— Fabrício se você ficar doente, será muito pior, já que eu não dou conta de cuidar da nossa menina sozinha.

Lucília começou a descer as escadas e eu continuei em silêncio, mas logo comentei, não aguentando ficar calado pelo resto da noite.

— Nesses dois anos não fiquei doente, não será agora que ficarei, Lucília.

— Fique sabendo que já é muito difícil para mim cuidar de uma menina de quatro anos sozinha. Estou velha, se ficar doente não aguentarei mais te ajudar.

— Isso não vai acontecer, Lucília.

— Tudo bem, então!

— Acho que vou para o meu quarto.

— Você só fica lá ultimamente, Fabrício.

Revirei meus olhos, depois segurei o rosto de Lucília entre minhas mãos e beijei sua testa.

— Não se preocupe tanto comigo.

— Eu prometi para sua mãe, antes de ela morrer que cuidaria de você como se fosse meu filho, então não me venha com essa de "não se preocupe comigo". — Ela tentou imitar minha voz grossa, falhando miseravelmente.

— Eu sei, mas não precisa se preocupar, já sou bem grandinho.

A senhora gargalhou na minha frente, sem nenhuma vergonha e ainda teve a ousadia de falar:

— Tão grande, que na maioria das vezes parece uma criança mal-criada.

— Assim me sinto ofendido — tentei fazer um pouco de drama.

Mas todas às vezes que eu pensava em permitir me abrir para o mundo, sentia-me culpado por não estar dividindo a minha vida com Elena. E foi por isso que deixei meu humor passar e voltei a ser o homem frio.

— Vou para o quarto.

— Vai lá, menino.

Lucília não tentou me impedir, já que ela me conhecia bem o suficiente para saber que eu não estava com mais vontade de sair da minha zona de solidão.

Afastei-me da mulher, subi as escadas lentamente, e assim que cheguei ao corredor que levava para os quartos, caminhei lentamente até parar à frente da porta do quarto de Cecília, abri-a lentamente para não acordar minha filha e fui até a sua cama.

Ela dormia tranquilamente, com seus cabelos pretos ondulados, bagunçados pelo travesseiro. Chupava o dedão da mão esquerda e com a outra abraça o porquinho que a mãe havia lhe dado quando completou dois anos.

Cecília era o ponto de paz que eu precisava para esquecer as merdas do mundo. Esquecer tudo o que me fazia mal e enquanto a observava dormir — o que era quase sempre — eu deixava meu coração se acalmar e daquela forma eu sentia menos dor e menos sofrimento.

Minha filha era o meu porto seguro e provavelmente eu nunca encontraria outra pessoa que a ajudasse a preencher o espaço gigante que meu coração tinha. Então eu deixava aquele trabalho completamente para minha filha.

Sabia que era injusto com ela, mas não conseguia fazer nada de outra maneira, era somente daquele jeito que eu me via.

Um homem completamente solitário, mas com um único fio de esperança chamado Cecília.

Um homem que aprendeu da pior maneira o quanto era ruim amar alguém mais que tudo no mundo, mas que continuaria pronto para amar sua filha pelo resto de sua existência.

Eu só não direcionava mais aquele sentimentos a terceiros, só ficaria com a minha filha e aquilo não me traria tanta tristeza.

Ao menos era o que eu achava. 

A Noviça e a Fera - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora