Os novos vizinhos e o bolo Bundt

13 2 0
                                    


Este é meu cômodo favorito. Eu gosto na maior parte do tempo, porque eu posso imaginar o vidro caindo e que eu estou do lado de fora. E foi isso que aconteceu quando encostei a minha mão nele, meu corpo caiu sobre o gramado falso e pude sentir o vento salgado me envolver, era o mar, na minha opinião a maior maravilha do mundo. A água fresca cobriu meus pés na medida em que eu me aproximava daquela imensidão de azul, meu corpo parecia boiar quando meus pés não tocavam mais a areia molhada.

Não sei quanto tempo isso durou até eu começar a afundar no azul que ficava cada vez mais escuro. Eu não sabia nadar e antes que pudesse entrar em pânico o azul sumiu e só havia o meu reflexo naquele vidro. Que decepção, preferia estar afundando no mar ao invés de encarar minha expressão de amargura.

Eu não saiu de casa. Não saiu há 17 anos e se eu sair, eu morro. Desculpe, por parecer melancólico.

Todas as minhas roupas são esterelizadas por irradiadores. Tenho 100 camisas brancas, é meu uniforme padrão. A trava é uma sala selada em volta da porta da frente, é hermeticamente fechada. Nada entra na casa quando a porta está aberta, não é que eu não queira ir lá fora, eu apenas não posso. Vírus simples podem me matar, como se eu fosse alérgica a tudo, o que como, o que toco, tudo tem consequências.

Tenho Imunodeficiência Combinada Grave (SCID), meu sistema imunológico é uma droga. Em cada gota de sangue há células especiais chamadas linfócitos. Alguns desses linfócitos são ótimos em derrotar vilões, como vírus e bactérias, mas eu tenho SCID. Quer dizer que tenho menos linfócitos que o normal e os que tenho não são muito bons de briga.

Minha mãe me fez entrar em um grupo de apoio, algumas dessas pessoas estão muito doentes, outras tem dificuldades com interação social.

Pelo menos tenho internet.

Durante a minha rotina eu prático exercícios, leio muitos livros e quando os termino escrevo breves resenhas como:

Alice no País das Maravilhas
Alerta de Spoiler:

Cuidado com a Rainha de Copas. Ela cortará sua cabeça.

Faço aulas on-line de Arquitetura, quando faço um novo modelo, coloco um astronauta dentro. Me identifico com ele, me sinto abandonado no espaço. E todos os dias são exatamente iguais.

Minha testa escorada na vidraça já estava doendo então me afastei, havia um caminhão que por algum motivo eu não percebi mais cedo, um garoto todo de preto estava sentado no baú me encarado, suas pernas balançavam no ar, nunca o vi antes. Ele continuava me encarando e se pôs de pé, talvez hoje seja diferente.

- Desça da caminhonete, Olly. - Um senhor de meia idade falou enquanto andava na direção do garoto que julguei ser o tal Olly.

O garoto de preto tirou um skate do meio de um monte de tralha e pulou do caminhão de mudanças. Ele tinha um sorrisinho cínico nos lábios enquanto me encarava sem ao menos tentar disfarçar e por algum motivo eu fiquei tímido.

- Oi. - Pude ler seus lábios. Ele acenou e desceu a rua no skate.

Eu fingi indiferença, mas assim que virei sentir meus rosto queimar em vergonha.

Escutei o barulho da trava da porta sendo aberta e sabia que minha mãe havia finalmente voltado, então desci apressado.

Se você vai ter uma doença que requer que alguém olhe sempre se você ainda está respirando, então é conveniente que sua mãe seja médica. Fui diagnóstico com SCID bem novo, minha mãe percebeu que havia algo de errado após oito otites e dois casos de pneumonia. Quando era bebê não ganhava peso, a maioria das crianças com SCID não passa dos dois anos. Me atrevo em dizer que tive"sorte".

Tudo e Todas as CoisasOnde histórias criam vida. Descubra agora