Se você é novo demais (e bastante sortudo), não viveu uma época onde uma quantidade razoável de gente não era burguês o suficiente para ter um videogame, essa parte da burguesia não mudou muito, mas antes, as alternativas eram diferentes. Ao invés de jogarmos jogos esquisitos gratuitos que rodavam em qualquer porcaria ou torrar o cartão de crédito da mamãe em algum "pay to win", a gente pagava pra jogar uma quantidade limitada de horas nos videogames de algum senhor. Eu chamava de locadora, mas não duvido que tenha mais de um nome.
Essa suposta "locadora" é filha de algo mais reconhecível, fliperamas. A ideia é a mesma, porém não somos limitados por horas, mas sim, por nossas próprias habilidades. Cada ficha (uma moedinha que servia pra começar a jogar) comprada equivalia, geralmente, a um continue, que por sua vez, representava na maioria das vezes umas três ou quatro vidas. Então, pela lógica, quanto melhor você for, menos grana vai gastar; ou seja, é ÓBVIO que muitos desses jogos eram insuportavelmente difíceis.
Eu amava torrar a grana da mamãe.
Eu devia ter quatorze e todo dia, depois do colégio, eu jogava "The Ultimate Battle Lord '99 Deluxe Edition." Essa era tipo a quarta versão de um jogo de luta bem frenético. Eles até lançaram a quinta, o "The Ultimate Battle Lord '99 Deluxe Edition PLUS – Fight For The Earth!", mas a essa altura eu já estava com preguiça, a diferença entre eles são a inclusão de alguns personagens e a correção de alguns bugs (que eu sinto que são mantidos em cada jogo de propósito...).
Pra quem nunca jogou nenhum caça níquel infantil, a lógica é que você escolhe um personagem e vai enfrentando os demais lutadores e lutadoras um por um. Eventualmente você alcança um ou três personagens indisponíveis para se jogar e que são terríveis de apelões. Vença eles que aparecem textinhos explicando a história exagerada do jogo que, convenhamos, é basicamente o roteiro de um daqueles desenhos japoneses esquisitos. Pelo menos você não tinha que matar Deus na maioria das vezes.
A ideia que o jogo e maioria dos jogos desse gênero vende é que o jogador deveria aprender e se adaptar com todos os personagens para obter a história completa. Eu nunca me importei com a história, então sempre escolhia a Line Kidetsu, uma espadachim que busca vingança pelo irmão ou algo assim. Eu jogo muito bem com a Line e sempre a achei bem bonita também, a maluca da Tina que tinha os peitos anormais de tão grandes e era difícil de jogar. Mesmo novo eu achava tudo nela bem tosco.
Eu era bom; não um profissional, mas bom. Depois de muito treino era capaz de vencer os chefes com uma única ficha. Um dia eu estava casualmente matando a segunda forma do Dark Lord e apareceu uma guria de cabelo preso tacando uma ficha na máquina do nada.
"Pelo menos avisa, ô caramba, eu tava jogando."
Ela fingiu nem me escutar, talvez nem tenha escutado mesmo. Ela usava uma camisa de manga longa e uma calça legging. Outros dias que a vi ela usava luvas, sempre de sapatos também; nunca vi uma obsessão tão grande para cobrir o corpo. Era assustadoramente magra, de um modo preocupante. Os cabelos presos aparentemente tingidos de preto pareciam ser consequência de incômodo, não de estilo.
Quando colocou a ficha, surgiu a mensagem "Aqui vem um novo desafio!" que sempre aparece nos combates multiplayer. Quem ela escolheu? Rei, o protagonista. Todo jogo de luta sempre tinha um cara fortinho que é bem fácil de jogar, logo pensei "Essa menina joga porra nenhuma."
Ela me venceu. Seus reflexos eram ótimos e seu raciocínio, muito rápido, a ponto de conseguir identificar quando os golpes eram fortes, médios ou fracos e ser capaz de esquivar da melhor forma. Perdendo para ela, perdi o meu progresso e isso foi bem irritante (mesmo já tendo completado o jogo tantas outras vezes... Era bem birrento). Ela, jogando de Rei, seria a nova oponente do Dark Lord, mas ao invés de continuar jogando só foi embora. Eu senti um considerável arrependimento por parte dela.
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Uma Aventura Em Uma Noite, Um Game Over Diferente
Short StoryHistórias sobre pessoas que jogaram videogame e tiveram suas vidas alteradas de alguma forma.