CAPÍTULO 1 - O ESPELHO

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Beatriz nunca tinha se apaixonado por algo assim antes de se olhar no espelho. Ele estava a venda num antiquário meio escondido numa rua do centro do Recife que ela encontrou por acaso. O calor do meio da tarde abafada de junho lhe escorria gotejando pelo pescoço, a poeira e o contato com a multidão a desgostava, mas o comércio do centro era popular e por isso encontrava coisas mais baratas. Ela já tinha passado tantas vezes por ali, mas nunca tinha sido puxada pelo ímã que aquele brilho fulgaz  lhe prometia. Parou sobressaltada e de trás de sua mente ela voltou e parou na frente do antiquário escondido de tudo e de todos.

Entrou um pouco intimidada por aquele ambiente que exalava um mofo atemporal, poeira rolava fina entre os rasgos que o sol jogava aqui e ali pelas brechas no telhado colonial.  Curiosa passou pela porta grande e antiga daquela loja meio escura, o brilho que entreviu rápido entre as sombras do interior a chamava, onde objetos variados brigavam atulhados, jogados ou expostos de qualquer jeito eram como obstáculos que Beatriz ultrapassou aos poucos. Sentiu a atmosfera das eras ao passar pelo umbral da porta e sentiu-se especialmente atraída a seguir seu caminho até os fundos da loja e explorá-la.

Segurando firme sua bolsa, fazia malabarismos para escapar das armadilhas e não derrubar nada. Levantou seus óculos escuros e coçou seu nariz, era alérgica a poeira que empesteava o lugar, mas estava encantada com o que via: cadeiras de vários modelos amontoadas em pilhas, vasos de porcelanas, azulejos, prataria, moedas em expositores, quadros antigos, lustres completos e quebrados, tudo em melhor ou pior estado do que imaginava. "Como podem comprar essas velharias quebradas?"

Escutou o barulho distante de uma descarga ao passar por um corredor. Uma porta se abriu inesperadamente e de dentro do que parecia um banheiro saiu uma senhora muito bem vestida e cheirando a Lavanda Inglesa que a olhou assustada. Tomada pela surpresa, Beatriz soltou um pequeno grito e levou a mão ao peito, passado meio segundo, a mulher a encarou com um olhar altivo de alto a baixo e um sorriso impessoal como uma marca de unha no sabão apareceu em seu rosto.

- Bom dia! Desculpe, mas não escutei-a entrando. - Uma voz aristocrática, de mulher de dinheiro, como a gente imagina quem tem dinheiro, temia que se estivesse segurando algum objeto, com certeza o teria derrubado e quebrado.

Beatriz tentou se recompor mas sentiu-se envergonhada, como se tivesse sido pega roubando ou coisa pior, como se fosse uma alienígena. Falou um pouco rouca e titubeante com sua voz saindo baixa a princípio e depois recuperando sua firmeza:

- Desculpe entrar assim ... mas sempre passo por aqui e nunca tinha reparado nessa loja de antiguidades e ... curiosa por um brilho eu entrei. Se estiver sendo incomoda para a senhora eu já vou saindo.

Já ia virando-se para sair, mas a mulher com aquele olhar oblíquo a respondeu quase num sussurro polido:

- Bem ... não somos tão populares assim, mas a Casa Antiquário n° 128 esta ativa nesse mesmo lugar a pelo menos 122 anos. É um negócio de família e tradicional, vem passando de pai para filho ... no eu caso filha. Meu nome é Adelaide e sou a dona, por favor não se apresse e olhe a vontade, quem sabe você não encontra algo de que se agrade.

Adelaide fez uma mesura com a mão estendendo-a e Beatriz sem jeito apertou-a fortemente, sentiu um desconforto, pois a mão dela era fria, talvez devido a sua ida ao banheiro banheiro recente. Mas a cliente retirou-a logo do aperto mole da dona do antiquário.

- Obrigada, mas eu só estou olhando e ... calou-se subitamente olhando para a parede em frente ao corredor longo e estreito, Adelaide olhou na direção em que Beatriz olhava e sorriu pela primeira vez de fato. Apontou o espelho que Beatriz olhava encantada.

- Oh! - Exclamou. - Vejo que a senhora tem bom olho. A peça que a encantou é uma das mais bonitas e raras de nosso acervo. É Art Nouveau legitimo, da década de 20, veio da  Itália, feito pelo designer Carlo Bugatti provavelmente em 1897. Veio de lá para enfeitar a casa de um barão do café paulista junto com outro espelho igual, que está desaparecido, provavelmente destruído, depois da queda do Império do café. Como pode ver ele tem seu espelho jateado em desenhos que são folhagens barrocos estilizadas, bem como uma moldura folheada a ouro que imitam os desenhos do vidro, se reparar bem existem figuras humanas por trás das folhagens que são uma ilusão de ótica, pois seria um fauno tendo relações sexuais. -  Falou Adelaide com os olhos estreitos e o sorriso amarelo manchado de cigarro, cheio de dentes desdenhosos.

O modo como ela falou fez com que Beatriz assumisse uma postura mais ereta e perguntou um pouco mais alto do que queria: - E quanto custa essa peça rara de seu acervo?

Adelaide sorriu abertamente dessa vez, estava visivelmente se divertindo com a situação, parou em frente ao espelho, se olhou ajeitando seu cabelo loiro com mechas brancas e viu Beatriz mais atrás de si em seu reflexo e virou-se lentamente sustentando o olhar da outra mulher e disse o preço do espelho. A mulher arqueou suas sobrancelhas com o susto da revelação do valor do objeto, respirou fundo e perguntou: - Aceita cartão?

A dona do antiquário a olhou com interesse agora, avaliando-a seriamente e falou:

- Bem não tenho como aceitar esses vícios modernos. Sei que é uma comodidade para o comerciante, mas infelizmente as vendas na Casa Antiquário n° 128 são sempre realizadas em dinheiro vivo e corrente.

Dirigiu-se ao aposento da frente sendo seguida por Beatriz que estava se sentindo humilhada sem saber o porque pela mulher. Tudo nela a fazia sentir-se desajeitada, desde suas roupas até a constatação de que era pobre e alheia a tudo que estava ali e que representava a vendedora.

- Bem minha cara, como estamos falando a respeito de uma venda em cash como se diz hoje em dia, eu temo que nossa relação termina aqui, tenha um bom dia e obrigado pela visita a minha loja. Falou com a nítida intenção de que depois da saída de Beatriz iria fechar a porta. Beatriz estava sendo despachada educadamente pela mulher, como uma poeira.

A cliente voltou-se para Adelaide e falou de uma forma fria que a fez olhar com um interesse novo ela:

- Eu irei levá-lo, a senhora pode esperar e não fechar a loja enquanto vou no banco e retiro o valor? Peço que o embrulhe bem pois o irei levar hoje mesmo!

O sorriso cheio de dentes e impessoal de Adelaide titubeou agora e ela nervosa olhou para trás e se viu refletida no espelho em questão, baixou os ombros como se estivesse vencida e assentiu com a cabeça.

_ Seja rápida, pois não tenho o dia inteiro! - Respondeu seca.






O espelho tem duas faces.Onde histórias criam vida. Descubra agora